As lágrimas de Marisa

Mostrei-lhes a canção e depois o momento em que Marisa se esvai em lágrimas, emudece, se deixa esmagar pela sombra da torre de Belém, imponente lá ao fundo. O povo, lentamente, como um lençol negro, levanta-se, num clamor abafado mas ensurdecedor. Luís Guerreiro, o guitarrista, desata a solo perante a impotência da fadista, arranca guitarras das unhas, enquanto a poucos metros a moçambicana mais lisboeta do mundo se desfaz. No fim do inesperado solo de Guerreiro, ecoa, arrepiante, a última estrofe desta inusitada “Gente da Minha Terra”, cantada já só com a alma, o povo em delírio, um mar de lágrimas e arrepios na plateia negra e aluada.


No Brasil, mostrei a alguns esta parte do DVD “Concerto em Lisboa”, de 2006, que subitamente me emocionava de uma forma ainda mais insidiosa do que antes, em Faro, traições sentimentais exclusivas de um emigrante, só ao alcance dele.


A maioria amava aquele momento, cria na genuína alma lusitana ali à vista, arrepiava-se comigo. Outros, muitos menos, olhavam-me de ar complacente, quase indulgentes, compassivos, piedosos da ingenuidade do portuga. Deste grupo diminuto, a quem eu adivinhava o pensamento, alguns ousavam exteriorizar o que lhes ia na alma: “Tudo teatro, isto é tudo fingimento”, diziam, com uma indisfarçável pontinha de admiração pela teatralidade que alegavam na cantora.


Do concerto para a vida, no Brasil de hoje cresceu este último grupo. Claro que por causa de uma sociedade corrupta, falsa, feita de políticos corruptos e falsos profetas. Já ninguém acredita mais em nada.


Mas há outras vertentes, inesperadas. O país em que ascende à presidência quem mais lança notícias falsas, o país do mundo com mais terraplanistas por centímetro quadrado, o país que, massivamente, põe em causa a veracidade da ida à Lua, o país que acreditou em “mamadeira de piroca” e no “kit gay” e todas as mentiras que os bolsonaristas lhe meteram pela goela, é também paradoxalmente aquele que mais desconfia.


É ilusório o paradoxo: sabe o íntimo mais fundo dos desconfiados de quantos enganos são feitas as suas certezas. Mas sabem também que a dúvida se alinha mais, para eles, com aquilo que é mais certo: da Terra redonda às virtudes da democracia, do evolucionismo ao antirracismo. Contra a probidade da Ciência, escolheram – sem jamais ter escolhido, é de infância – a improbabilidade de Deus; contra o amor, o ódio; contra a verdade a mentira.


Há poucas semanas atrás, o secretário de Estado da Saúde português emocionava-se em plena conferência de Imprensa diária.

Quase 2.000 mortos depois, naquele dia o vírus fizera zero mortes. Houve muitos comentários no Facebook. Surpreendi-me: a maioria dos comentadores não acreditou na genuinidade do governante: “mentira”, “falso”, “fingimento”, jurava a maioria.

 
No passado fim-de-semana, a desconfiança portuguesa repetiu-se: o simples gesto de Marcelo Rebelo de Sousa ao aproximar-se de duas jovens cuja embarcação se virara valeu-lhe epítetos como “só fingimento”, “tudo fabricado”, “as eleições estão à porta” e outros.


Neste mesmo país, as ameaças de um grupo de extrema-direita a uma dezena de ativistas antirracismo mereceu na última semana de vários frequentadores de redes sociais – li-o com estes que a terra há-de comer – o comentário de que se tratou de um embuste: os e-mails com ameaças seriam falsos e produto de e-mails fictícios.


Parece que quanto mais inverosímil um facto é, mais verosimilhança os novos comentadores lhe encontram. E vice-versa. E esse “cruza pé” é típico da extrema-direita e é tão mais utilizado quanto mais extremado é o seu protagonista. Claro que esta distorção do real só funciona para um lado: os mesmos que, sondagens e sondagens a eito, diziam não acreditar em sondagens, que elas eram produto do sistema, falsas, manipuladoras, são agora aqueles que dizem acreditar nos recém divulgados 7,9% do Chega (sondagem Intercampus desta segunda-feira, 17) e os arremessam à cara dos “esquerdolas”.


Tal como acontece com uma parte dos brasileiros que descrêem de lágrimas verdadeiras mas crêem na Terra Plana, parece haver no meu país cada vez mais gente que se esforça para só acreditar na mentira e no que está errado, factual e eticamente.

E teimam em não acreditar na bondade, no amor, na genuinidade generosa do ser humano. O fenómeno é endémico no Brasil, onde Bolsonaro ganhou com 37 milhões de votos. Mas está a conquistar Portugal, onde Ventura pode bem passar de 1,29% para 7,9% em quatro anos. É isso que me preocupa, quase ao ponto da lágrima sincera.

João Prudêncio

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