Avarias: Maluquices

Começo a ler um livro e geralmente dou até à página vinte – trinta para saber se é de continuar ou não. Depois existem uma série de aspectos (aspetos, segundo o AO de 90) que convém levar em linha de conta: raramente ultrapassei a página cinquenta sem ter acabado por ler o livro, isto se falarmos num romance. Noutros géneros (história; biografias; variedades, como livros de entrevistas – leio aos bochechos, um com Vasco Pulido Valente – coisas técnicas) não tenho esses pruridos; vou e volto em busca de informação que me interesse, leio umas partes e salto páginas. Lembrei-me desta estatística doméstica porque permite diferenciar livros, filmes e séries.

Tenho a ideia de quando comecei a ver cinema, raramente saía antes do filme terminar (o correspondente a interromper um romance na página cinquenta), mesmo que aquilo não fosse para mim. Era o tempo dos realizadores que pensavam e escreviam uma fita a partir de ideias. Um período artístico, muitas vezes, muito e erradamente intelectualizado, onde as rupturas de filosofia e pontos de vista eram consistentes com um determinado tempo: com esse caldo filmava-se o bom, o mau e o diferenciado, que era o grande segredo daqueles tempos, sabe-se agora.

Os americanos tinham uma indústria, mas no meio de tanta produção (e talvez por isso mesmo) existia sempre, a reboque de grandes e médios realizadores, uma mistura das duas coisas (intelecto e entretenimento), que por vezes unia o melhor dos dois mundos. Hoje o universo do cinema está partido (veja-se o caso do cinema português, em que coexistem uma produção estilo bilhete postal, mesmo que seja filmado no bairro das Galinheiras, conjuntamente com actualizações tolas de antigas obras, como o Pátio das Cantigas) e da América chega-nos (às salas a que temos direito) muito pouco cinema independente, que é a designação que se dá a um filme que não seja produzido com a única intenção de fazer ganhar uma fortuna para os investidores que o tornaram possível.

Hoje, o normal da produção dos states são os pastéis da Marvel, franchaises, que reproduzem a marca dos super-heróis, que já foram postos de cabeça para baixo e sacudidos para saber se cai mais alguma coisas das algibeiras, umas cento e cinquentas vezes (números por baixo). Como consequência, cá para os algarves não temos direito a ver mais que uma migalhas de qualidade, no meio das grandes produções para encher (ver parágrafo anterior), que nos vão sendo passadas nas poucas salas que funcionam em condições normais.

Sobre as séries: as que vamos vendo são o que melhor se aproxima do espírito do velho cinema, que os grandes êxitos dos tempos modernos, alicerçados apenas na estrita observância dos efeitos especiais como motor e objectivo final de um filme, vão subtraindo à nossa cultura. Mas uma série puxa-se, contrata-se, revê-se mais tarde, admite dormir a meio etc. O ponto é que os filmes, determinados filmes (digo os que são bons, mas aparentemente secantes), ainda nos põem a dúvida sobre se devemos ou não sair ao intervalo; exigem de nós uma disponibilidade (sair de casa, aguentar os vizinhos a entupirem-se de pipocas) e uma paciência que está mais próximo de ler um livro. Nos tempos que correm pode ser um acto heroico.

Fernando Proença

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