D. Álvaro Pais, um franciscano que foi bispo de Silves

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D. Álvaro Pais, bispo de Silves, de seu nome completo Álvaro Pais Gomes Charinho, nascido em San Juan del Salnés, em terras de Pontevedra, na Galiza, entre 1275 e 1280, embora haja quem o dê como nascido em Santarém. Filho espúrio do almirante da corte castelhana, D. Payo Gomes Charinho, trovador galaico-poruguês.
Os primeiros anos da sua formação tê-los-á passado na corte de D. Sancho IV. Terminada a fase inicial da sua aprendizagem, foi encaminhado para a diocese de Santiago de Compostela para seguir a carreira eclesiástica. Terá frequentado a Universidade de Lisboa, onde igualmente terá sido professor.
Estima-se que no final do século XIII e início do século XIV estivera em Bolonha onde cursou Direito e obteve o grau de Direito Civil e Canónico, sob a tutela do célebre canonista Guido de Baysis que leccionava naquela universidade. Aí, Frei Álvaro Pais tornou-se professor da universidade onde fora aluno.
Em 1304, com cerca de 34 anos, ingressa na Ordem dos Frades Menores, muito provavelmente, a convite do seu familiar, Gonçalo Gomez, num período em que se encontravam reunidos no Capítulo Geral, na cidade de Assis, renunciando a todos os bens de raiz, títulos e privilégios, distribuindo-os pelos pobres.
Já na condição de menorita, ensinou Direito Canónico no Convento dos Pregadores, na cidade de Perurgia, vivendo durante algum tempo em Ciboltola, localizada entre Perurgia e Città della Pieve.
Há quem afirme que, pouco tempo depois de ter recebido o hábito de franciscano, Frei Álvaro estivera em Paris, para cursar Teologia; estudos posteriores não confirmam a sua passagem pela universidade de Paris.
Provavelmente, em 1310, Álvaro Pais, esteve novamente no convento de Assis. Conforme relata no livro Estado e pranto da Igreja, esteve em Milão por volta de Janeiro de 1311, data coincidente com a coroação de Henrique de Luxemburgo, imperador romano-germânico, que recebeu naquela cidade a coroa de prata, símbolo da realeza ítalo-lombarda, ocasião em que Frei Álvaro foi espectador.
Na fase inicial da sua trajectória como franciscano, Frei Álvaro envolveu-se nas disputas internas da Ordem dos Frades Menores, em volta da pobreza de Cristo e dos Apóstolos, acabando por se aproximar da corrente dos espirituais que defendiam uma posição mais rigorosa quanto à prática da pobreza ao invés dos conventuais que mantinham uma posição menos extremada quanto à visão da pobreza e ao uso dos bens materiais. Obedecendo ao Papa João XXII, de quem se manteve sempre seguidor e fiel, Frei Álvaro separou-se totalmente dos espirituais e aderiu aos conventuais.
Frei Álvaro é um homem activo, não assistindo de modo passivo, à luta pela chefia da igreja, entre João XXII e o antipapa Pedro de Corbara, tomando decididamente o partido do primeiro.
João XXII, em 22 de Fevereiro de 1332, dispensa Álvaro do impedimento da ilegitimidade paterna, mediante a bula Libentur Illis possibilitando-lhe a obtenção de todas as dignidades eclesiásticas . A 16 de Junho do mesmo ano, é sagrado bispo de Corona/Koron, na Grécia, funções que nunca chegaria a desempenhar. Em 6 de Junho de 1333 foi transferido para a diocese de Silves.
No sul do reino, região que havia sido reconquistada aos mouros relativamente há pouco tempo, estando sob o controlo mais efectivo da monarquia, onde os bispos nunca tiveram um poder político tão incisivo quanto os seus colegas do norte, o Papa João XXII nomeia D. Álvaro Pais, para a diocese de Silves, a pessoa mais adequada para seguir as práticas que a Igreja adoptava a enfrentar o poder autoritário do rei.
Em Maio de 1334, D. Afonso IV convocou cortes para Santarém para expor as questões que mais o preocupavam: o casamento de D. Pedro, príncipe herdeiro, com D. Constança Manuel, nobre aragonesa, que se havia unido em matrimónio com Afonso XI, de Castela, mas cujo enlace não se consumara. Afonso XI, casado com D. Maria, filha de Afonso IV, portanto, genro do rei de Portugal, repudiara a mulher e vivia em adultério com D. Leonor Nunes de Gusmão. D. Álvaro Pais na sua condição de prelado, também foi convocado para tomar parte na referida assembleia.
Ao convocar as cortes, pretendia Afonso IV conseguir o apoio dos grandes do reino a fim de exigir de Afonso XI o cumprimento dos deveres matrimoniais contraídos com a princesa portuguesa; por seu turno, D. Pedro já havia firmado esponsais com D. Branca de Aragão em 1328, entretanto, repudiada por ter sido considerada incapaz por ser física e mentalmente enferma.
Porque Afonso XI impediu a passagem de D. Constança por terras castelhanas a caminho de Portugal, o rei de Portugal declarou imediatamente guerra ao rei de Castela, conflito que levou o rei de Portugal a sobretaxar e a confiscar bens eclesiásticos, particularmente na diocese de Silves. D. Álvaro Pais escreve uma carta ao rei, não só condenando a guerra, mas também proibindo-a, esclarecendo que não deveria aumentar os impostos, nem confiscar os bens da igreja. Esclarece o bispo de Silves que não recebera a convocatória para as cortes porque se achava enfermo em Alcobaça, havia mais de cinco meses com problemas de pele, nomeadamente, impinges, sarna e pruridos, seguindo depois para as Caldas de Óbidos com vista à sua cura. Não obstante a posição acérrima de D. Álvaro, D. Pedro e D. Constança casam em Évora em Janeiro de 1336, acabando a guerra por acontecer em Agosto desse ano.
Não foi fácil a integração de D. Álvaro Pais na diocese de Silves. O arcediago não queria aceitar D. Álvaro como bispo legítimo, tendo havido a intervenção do Papa João XXII em defesa do seu antigo colaborador que em1330 tinha exercido o ofício de penitenciário ao seu serviço. Integrado no meio silvense, o Prelado franciscano não governou a sua diocese com tranquilidade, porque veio a desentender-se com D. Afonso IV e com ouros clérigos cuja conduta e género de vida censurou duramente. A razão maior para o desentendimento com o rei terá sido motivada pela política centralizadora que passou a ser adoptada pelos monarcas europeus, incluindo o de Portugal, que se incompatibilizava com as ideias hierocráticas de Álvaro Pais, grande defensor do poder do papado e, obviamente, da igreja que tinha vindo a enfraquecer-se em pleno século XIII.
Homem de saber enciclopédico, defensor de princípios por que pugnava, no âmbito de ideais perfilhados por Santo António, como a defesa da pobreza, ataque à corrupção por parte de alguns membros da igreja e da supremacia do poder espiritual sobre o temporal, não deixa de combater e lutar pelos seus desígnios face à governação de Afonso IV, dizendo-lhe que ele se deixou levar por maus conselheiros, passando a cobrar impostos arbitrários da igreja de Silves, a fim de poder guerrear com o seu genro sem haver pedido autorização à Santa Sé, violando, assim, a imunidade eclesiástica e desrespeitado a sua jurisdição.
D. Álvaro repreende o rei porque consentia que os seus funcionários se apossassem dos bens pertencentes ao bispado, os quais se destinavam a suprir necessidades materiais dos crentes e que ele, bispo, era só dispenseiro. Além disso, sem saber porquê, estava a receber um tratamento injusto, pior do que era dado aos outros dignitários eclesiásticos do reino. Lembra ao rei que compete só à autoridade espiritual e a Deus julgar os maus clérigos.
Nas duas cartas que chegaram até nós, escritas em latim, com tradução para português, num trabalho notável do jesuíta Domingos Maurício, pede sinceras desculpas a D. Afonso IV, pelo facto de se haver expresso num modo franco e leal, porém veemente e duro.
Álvaro Pais, às letras dado, muito observou e muito viveu. Para a posteridade ficaram também livros que nos legou, resultado da sua vivência e do seu peregrinar andarilho; escritos em latim, já traduzidos para português, que ainda hoje fazem actualidade.
Speculum Regum (Espelho dos Reis) começado em 1341 e terminado em Tavira em 10 de Julho de 1344, dedicado a Afonso XI, rei de Castela, de grande interesse para o conhecimento das ideias políticas, sociais e morais na Península Hispânica, sendo considerado o primeiro trabalho conhecido de Filosofia Política escrito em Portugal. De Statu et plancto Ecclesiae (Sobre o Estado e Pranto da Igreja) escrito entre 1330 e 1332, Frei Álvaro defende a legitimidade de João XXII, como chefe da igreja. Sobre o estado da igreja e do país repreende os múltiplos vícios. Collyrium fidei adversus haereses (Colírio da fé contra as heresias) escrito entre 1345 e 1348, classificado como um catálogo de heresias que a formação jurídica do bispo silvense encontrou uma tese para o respectivo oposto herético. Contrário às manifestações bélicas, não enjeitava a guerra contra os hereges. Deixou-nos ainda, Comentários ao Evangelho de São Mateus, Comentários aos 4 Livros de Santiago, Sermão sobre a Visão Beatífica e Pequeno Tratado intitulado De Potestate.
De carácter impetuoso e inquieto, lutando pelo que pensava ser melhor para a igreja que sempre defendera, ao lado do Papa, supremo senhor dos seus princípios e da sua ortodoxia, entra em choque com os membros dos concelhos algarvios porque os funcionários reais continuavam a imiscuir-se em problemas da jurisdição episcopal, além de prosseguirem na cobrança de impostos clérigos, ignorando por completo o direito de imunidade eclesiástica.
Além destes factos, os seus diocesanos queixaram-se ao monarca de que ele os havia difamado, falando mal deles em público, alegando, ainda, que o bispo e seus oficiais se intrometeram em assuntos do foro civil ou impediram a actuação do alcaide, juízes ou outros funcionários, ameaçando ou excomungando quem se lhes opunha. O Prelado Franciscano ainda era acusado de estar ausente da diocese há três anos, defendendo-se que jamais difamara alguém, limitando-se apenas, de forma genérica, a denunciar nas suas prédicas, os pecados e vícios cometidos pelos membros do seu rebanho. Admitiu que se ausentou do bispado por que fora desrespeitado e tolhido no seu ministério pelos oficiais régios.
Apesar da interferência do rei, a querela está instalada entre o bispo de Silves e os Concelhos da região, tendo D. Álvaro desentendendo-se com D. Lourenço Vasques, comendador de Mértola e D. Lourenço Calado, Corregedor régio para o Algarve, preferindo exilar-se em Sevilha, onde residiam alguns dos seus familiares, tendo escrito ao Papa Clemente VI, a 27 de Setembro de 1349, informando-o acerca de tudo o que tinha acontecido na diocese, alegando não ter mais condições para continuar.
Saído definitivamente de Portugal e estabelecido em Sevilha, redige o seu testamento. Jaz em mausoléu levantado sobre a sua sepultura na igreja das Clarissas de Sevilha, sendo incerta a data do seu falecimento, entre 1349 e 1350.


João Cabrita

Bibliografia
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Maurício, Domingos, Cartas de Álvaro Pais, Brotéria, Revista de Cultura, vol LXXXI, nº6, Lisboa, Dezembro 1965
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Natário, Maria Celeste, Itinerário do Pensamento Filosófico Português, Zéfiro, 2010
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As causas eficientes e final do poder espiritual a visão de D. Frei Álvaro Pais, Cultura, Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 25, 2008
Souza, Arménia Maria, Os pecados dos reis: a propósito de um modelo de conduta para os monarcas ibéricos no Estado e Pranto da Igreja dos Reis, do Franciscano Galego D. Álvaro Pais (1270-1350), Tese de doutoramento, Brasília, 2008

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