Empresta-me os teus olhos para ver as luzes de Natal

Matilde era uma menina muito linda. Conhecia-a com pouco mais de 13 anos e era filha de uma empregada de quartos, na Aldeia das Açoteias, quando por lá andei em finais da década de setenta, começo da década de oitenta, como Chefe de Gabinete de Imprensa, portanto, uma coisa que aconteceu há muitos anos.

Matilde tinha uns olhos lindos, de um azul brilhante apesar de escondidos por umas lentes de terrível graduação.

De lá para cá, da distante década de oitenta para cá, a minha vida deu uma volta de mil graus, tipo ventoinha descontrolada, mas o tempo e as voltas e contravoltas, não passaram só por mim, também passaram pela Matilde…

À esquerda do jardim, às casas que se avistam era o local onde o Dr. Manuel Rodrigues tinha o consultório. Este jardim ficava à entrada da Vila

Há dias, nesta azáfama do Natal, mas fazendo apenas de motorista, estive no  Mar Shopping, em Loulé (e como eu me sinto um deslocado quando vou a estas grandes superfícies comerciais) e enquanto conversava, diga-se em conversas de nada, com a empregada de uma sapataria, onde a minha esposa investigava um salto raso, que estava tão aperaltada como as hospedeiras de bordo da TAP, nos anos 70, escutei uma voz misturada com outras vozes:

O Senhor, não é o Neto Gomes?

Quando me tratam por Senhor eu costumo dizer que o Senhor está na Igreja…

Olhei para um e outro lado para procurar entender de onde vinha aquela voz e quem é que me procurava.
Reparei, entretanto, numa senhora que aparentava cinquenta e poucos anos levada por uma bengala e acompanhada por um jovem a rondar os vinte anos, que mais tarde vim saber que se tratava do seu filho.

Sim! Sou eu o Neto Gomes e a Senhora quem é?

Talvez não se lembre de mim, já se passaram muito anos e o meu nome, Matilde também não lhe dirá nada, quando existem tantas Matildes, no Mundo…

O quê! Tu és a Matilde, filha da Dona Virgínia, que era empregada de quartos, nas Açoteias e que morava na Branqueira? A tal menina de olhos bonitos?

Após mais três ou quatro minutos de vaivém de conversa, sentamo-nos durante uma curta meia hora, porque apesar das viagens que fizemos pelo tempo que ficara para trás, outro tempo a somar a muitos mais iam ficando à porta da conversa.

Depois de um abraço de despedida ao seu filho, que vim a saber que se chamava Filipe, por esta altura a frequentar engenharia informática, e depois de lhe desejar um Feliz Natal, abraçou-me como sinal de despedida e disse-me:

Pois é, senhor Neto Gomes, que feliz que fiquei por encontrá-lo e como estamos no Natal, quem me dera que me emprestasse os seus olhos para ver as luzes e os presépios…

E lá foi com o filho, outra vez guiada pela bengala… e também pela esperança e pela dignidade, a mesma esperança e dignidade, que vai faltando aos donos disto tudo: um dia mandas tu, outro dia mando “eu”, os outros…

O professor Armando e a cobra a assomar-se entre o musgo do presépio
Era o tempo da Escola Régia, que se pronunciava, pelos menos eu, como escola «rés».

Num tempo e numa escola (a escola dos moços em Vila Real de Santo António) onde existia gente fabuloso como o tio Raul, o senhor Estrela, a Dona Elisa. E estas eram mesmo figuras fabulosas. Eram os nossos ídolos de crianças e que até nos olhavam como uma espécie de bênção, quando chegava o momento de enfrentarmos professores de outra era, diga-se ruins, como o Professor Primitivo ou o Professor Armando…

Armando era pior e que hoje chamamos à memória desta «meca do tempo», a este tempo de Natal, para narrarmos em nome da referida memória, porque dar vida à memória é escrever a história, relembrando, que um dia os alunos, onde eu me incluía, moços de 8/9 anos, «lhe armámos uma parte», quando nos pediu ajuda para a montagem de um presépio na sala de aula.

Por esses anos distantes o Porto de VRSA era uma força imponente para a economia da Vila e não só. Depois os homens fizeram-no regressar à «Era da Pedra»

Recordo-vos que noutras páginas bem distantes do Jornal do Algarve, por várias vezes escrevi sobre o Prof Armando, que em certa altura, até denunciei que era pior que uma dor de dentes, pelo menos daquelas que eu tinha muitas vezes, quando os dentes eram os meus, porque agora tenho dentes que nem sei de quem são.

Perante tal sofrimento a minha saudosa tia Isabel Gomes Nené, mãe do meu primo «Ternage», o Nené, lá me fazia umas benzeduras para a dor acalmar, até chegarmos ao consultório do Dr. Manuel Rodrigues, que se situava à quina da «esplanada dos bombeiros», onde se faziam bailaricos e grandes jogos de hóquei em patins, tendo como praticantes uma geração, cinco ou seis anos antes da minha…

Portanto, o Dr. Manuel Rodrigues, tratava e arrancava dentes, (ao lado da venda do César), na rua da saída da «Vila», onde estava instalada a «Legião Portuguesa». Mas regressemos ao Presépio…

Aceitando o desafio do poderoso Prof. Armando, lá fomos à caça do material necessário para montarmos a árvore de Natal e o Presépio. Sem nos fazermos rogados, misturámos uma mão cheia de troncos e musgo, com uma pequena cobra que andava a fugir de nós por entre a retama.

O pior foi quando o Prof. Armando começou a pegar no musgo e viu a pequena cobra. Foi mesmo um «ver se te avias» e a nossa salvação foi que num repente entrou na sala o Prof. Geleate Canau, natural de Tavira, que ia diariamente de mota para Vila Real de Santo António.

Só que nesse intervalo, bem escasso, já havia tinteiros no ar, que nesses tempos estavam incorporados nas carteiras, porque era uma época em que a escola nos ensinava a escrever com uma caneta e as mangas da camisa, do pulôver ou do casaquinho de malha a servirem de mata-borrão. E saberá a rapaziada de agora, agigantada com a inteligências artificial o que é um mata-borrão? Querem ver que ainda pensam que são coisas da era da pedra?…

Esta foi uma das muitas equipas que jogou hóquei em patins na esplanada dos Bombeiros. Em cima, julgamos reconhecer à esquerda o Teixeira Marques, mais velho. Depois os dois últimos à direita são os saudosos José João Bringel e Xavier. Em baixo o tempo e a falta de mais ferramentas não nos permitem descobrir quem são, mas fica aqui a nossa saudosa homenagem

Não sei se o Professor Armando, sempre chegou a montar a árvore e o presépio, porque a cobra atirada pela janela, ainda foi recuperada pelo senhor Raúl, que a lançou para a mata, o que sei é que a seguir entrámos nas férias de Natal e só regressámos à Escola «rés», no ano seguinte.

Recordo que reentrámos na sala de aula bem murchos, receosos de levarmos mais uns meses com o Prof. Armando, num tempo em que ainda existiam professores como a D. Fernanda (Camisas), a D. Adélia, a D. Ana, e Prof. Geleate Canau e tantos outros e ainda por cima eu não levava o dinheiro da caixa. Os tempos eram complicados. Sabem o que era o dinheiro da caixa? Eu depois explico, se não acabarem com o Jornal do Algarve.

Mas qual não foi o nosso espanto, feito de uma incrível alegria, quando em vez do Prof. Armando, entrou na sala a Profª Isabel Pato. Saudosa e querida professora. Uma grande senhora a quem fiquei sempre eternamente grata, tal como a seu filho, o querido e saudoso Professor António Rosa Mendes.

O Natal também tem coisas, que o Natal nunca nos deixa esquecer…

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