Inundações, clandestinos e outros destinos

“É mais fácil fazer a casa clandestina e depois pagar a legalização!” Ouvi isto inúmeras vezes ao longo da minha vida, justificando a opção por construção de “clandestinos” em vez de fazer aprovar projectos. Muitas vezes, os próprios loteamentos eram, também eles, clandestinos e, pior ainda, em locais problemáticos. Tudo isto retira credibilidade às entidades públicas envolvidas, até porque o fornecimento de electricidade nada tem a ver com a legalidade – ou clandestinidade – das construções! Também os técnicos -arquitectos, engenheiros e outros- saem inferiorizados, por facilitar a vida a pessoal pouco ou nada qualificado porque, não indo o projecto a licenciamento, qualquer um se encontra “habilitado” a projectar e executar o que quer que seja, com todos os riscos que daí advêm!

Mais, a pouca informação fornecida pela generalidade das autarquias sobre as capacidades de determinado local ou construção, reforçam este estado de coisas. Recordo-me de um “loteador”/agente imobiliário, que só vendia terrenos a emigrantes nos meses de verão. Porquê? Porque de inverno esse “loteamento” invariavelmente alagava e os lotes ficavam debaixo de água! Estas situações estão, felizmente, muito mitigadas por diversos factores, entre os quais a maior capacidade técnica e autonomia das câmaras municipais! No entanto, os tempos de aprovação, a burocracia, as exigências pouco claras e -até- a arbitrariedade de muitas das aprovações, levam ainda muitos a recorrer a este nocivo estratagema. E é nocivo porque, para além das arbitrariedades e exigências absurdas (quantas vezes ditadas por obscuros interesses), há factores que só um estudo global do local em que se venha a situar a construção pode decidir se este é um bom local ou não. Estão neste caso terrenos de grande aptidão agrícola (e por isso muito húmidos e maus para a saúde), leitos de cheia, zonas de frágil constituição (que poderão derrocar facilmente) entre muitos outros factores.

Deveríamos ter aproveitado muito melhor os “ensinamentos” da noite de 25 de Novembro de 1967 (as maiores cheias em Lisboa e na periferia) mas, para além de se ter registado o acerto de uma entrevista anterior do Prof. Gonçalo Ribeiro Telles, pouco mais terá sido feito, a não ser exercer censura (ao tempo existente) sobre os número de mortos, de desalojados e de casas destruídas! Temos esta tendência para ter a memória curta, para esquecer o que nos apoquenta o mais depressa possível e, por tudo isso, tendência para a desgraça! Além do mais, havia aquela história (então verdadeira) de que “as grandes cheias são só de 100 em 100 anos”, o que remetia para bisnetos o horizonte da desgraça anunciada. Mas, com as alterações climáticas, a situação mudou: as chuvas tropicais e as consequentes grandes cheias deixaram de ser centenárias, os fogos deixaram de ser no meio de coisa nenhuma e os sismos batem-nos ao pé da porta, quase anunciando que para a próxima poderá ser por cá! E tudo muda de figura! Tudo “não está feito”, tudo “é urgente” e a culpa é sempre “deles”, essa figura mítica tão utilizada quanto estranha, que serve para afastarmos de nós próprios (ou de quem nos é próximo) qualquer participação na falta de organização e desordenamento geral. Pois, minhas senhoras e meus senhores, é tarefa de todos nós preocuparmo-nos com estas questões que podem pôr em xeque as nossas próprias vidas e as vidas de quem nos é próximo! Construir clandestino, por muito aliciante que possa parecer, trará sempre graves problemas à comunidade: se se constrói em leito de cheia, será fácil perceber que quando da próxima tromba de água, esta invadirá o seu espaço ancestral e tudo o que estiver no seu caminho, irá ser arrastado: carros, árvores, postes e quaisquer outros entraves à sua passagem! Pior ainda, porque muito do seu espaço já está ocupado (com casas, estradas, etc), a água aumentará de velocidade e consequentemente de poder de destruição! Isto, se não levar à frente algumas construções mais frágeis! Se se edifica numa bacia de infiltração (terrenos normalmente sempre verdes), além de se estar a inibir a água de se infiltrar livremente (e ir alimentar as toalhas de água subterrâneas), estarse-á a fomentar uma habitação muito húmida (porque feita “dentro de água”) com os consequentes problemas pulmonares para todos os seus ocupantes! Isto são apenas dois pequenos exemplos das consequências de passar entre as malhas da legalidade através de multas e outros métodos menos ortodoxos! Deveremos sempre ser correctos na forma como nos comportamos, mas exigir ser tratados igualmente: tempos razoáveis na apreciação pelas entidades públicas de projectos e justificação clara das respectivas decisões ou limitações.

Para além de tudo isto, é preciso respeitar os direitos dos outros, não deixar carros, bicicletas ou mais modernamente trotinetes a entupir o espaço público ou a circulação de pessoas e veículos. Em suma, há que utilizar com moderação e nunca em proveito próprio exclusivo o que é de todos. Devemos exigir que cada um cumpra a sua parte, e que as entidades disponham dos meios necessários ao socorro e combate das catástrofes! Devemos exigir que, quando licenciam ou promovem uma nova urbanização (ou o que seja), estejam assegurados todos os meios necessários à segurança dos utentes e que os hospitais e outros edifícios fundamentais (protecção civil, bombeiros, forças da ordem, etc.) estejam em locais dificilmente atingíveis por tais catástrofes. Uma coisa é certa: clandestinos e outras ilegalidades podem pagar-se muito caras. Desafortunadamente, só quando já é demasiado tarde tomamos consciência do preço que há a pagar!

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1 COMENTÁRIO

  1. De facto, a mãe-natureza é condescendente com muitos dos nossos contínuos atropelos às suas leis, porém, existe algo que não perdoa, de todo.
    É quando até as chamadas “linhas de água” são pasto da ganância / inconsciência e utilizadas para construções imobiliárias, algumas vezes, com a assinatura consciente, mas venal do(s) respectivo(s) técnicos decisores.
    A “vingança” daquela assume, então, na primeira oportunidade, formas de destruição brutais, quando não dramáticas.

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