JOSÉ CARLOS BARROS

 Ficções [21.] Uma crise

 

NÃO SEI QUE possa interessar-lhes do que disser. Tenho oitenta anos e relativizo quase tudo. Perdi, por um lado, a paixão e o entusiasmo dos anos antigos. Aprendi, por outro lado, que a História se repete em ciclos mais ou menos curtos. Que tudo, portanto, acaba por ser o que já foi. Por isso olho de um modo afastado o correr do tempo; sem o sobressalto que já tão raramente chega a tocar-me de não acreditar que é possível unirmo-nos em objectivos comuns e desinteressados; sem a revolta de assistir à repetição dos erros, por compreender (e compreender chega a ser aceitar) que só depois de cairmos é que tomamos consciência das quedas; que só depois da casa derruída é que lamentamos o absurdo de ninguém (os outros) se ter lembrado, antes da tempestade, de escorar as paredes já de si tão refratárias ao fio de prumo.

JÁ SE VÊ, não sou um bom exemplo para ninguém, e sobretudo para quem, como vós, jovens, tem razões para lutar pelo que vos é devido de apenas vos pertencer. Escolho as frases cuidadosamente. Não sei como falar-vos numa época avessa à claridade da afirmação, tão politicamente correta que pesamos vagarosamente cada sílaba dos discursos, preocupados com o pensamento médio, pela superfície nivelado, por temor da rasura pública; em que escolhemos as palavras em função da probabilidade estatística do aplauso.

ACOMPANHO-VOS no entendimento de que não houve nunca uma crise como esta no tempo da minha vida demorada. Mas por razões diferentes das que me dais conta. Veja-se a contradição: não conheci época em que se vivesse melhor do que esta em que a maior crise se prepara para baralhar de novo. Nunca, pelo menos, tivemos à nossa disposição um número tão elevado e sofisticado de bens de consumo. Nunca foi possível tanto conforto (conceito estranho, sim, que temo desajustado da vossa compreensão). Nunca a possibilidade do sonho foi tão concreta. A minha geração nasceu na ressaca da primeira guerra mundial e no ricochete de uma crise financeira, a de 29, que vem nos livros de História. Quando éramos jovens, quando procurávamos o futuro tão a custo, tão do fundo de um túnel, veio a segunda guerra mundial bulir com tudo, com os alicerces e as paredes das nossas utopias e das nossas realizações programadas. Vivemos uma ditadura. Uma guerra colonial. A ignomínia de mandados políticos de captura. Atravessámos permanentes crises, tempos de vacas magras. Não tivemos roupas de marca. Não tivemos médicos. Não tivemos escolas. Tínhamos um muro de cimento armado diante da nossa vontade de escolher os lugares.

DIGO, PORTANTO, que não existem razões para que lutem, para que venham para a rua gritar o vosso grito de geração desavinda, de geração adiada? Não: digo o contrário. E digo mais, e esse é o meu ponto: digo que a vossa luta vai ser muito mais difícil do que a luta de quantas gerações vos precederam. A mais exigente. A mais traiçoeira. Pela simples razão de que a minha geração nasceu na escassez e a escassez era praticamente (esqueçamos o permanente sonho) a única promessa que se permitia a si mesma. Pela simples razão de que a minha geração teve sempre tão pouco que não era possível perder quase nada. E à vossa geração prometeu-se tudo. Deu-se tudo. A ilusão da abundância. A ilusão de que tudo, o mundo todo, vos esperava ali à esquina.

E É DESSE DESACERTO entre a promessa e a realidade concreta que vai ser tão difícil, tão custoso, verem-se livres.

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