Lírica do Impasse

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Colaboradora. Designer.

Nasci brasileiro há 40 anos. Componho e canto há 25. Gravo discos há 10.


Muitas vezes permiti que reverberasse em minha cabeça uma subtil reprovação: “- Por que tanto barroquismo em minha música, quando a busca por maior leveza e menor densidade deveria balizar o trabalho do cancionista?”


A grande canção brasileira parecia ser um gesto de espontânea conciliação num país dilacerado por injustiças. De dentro do horror social, lá do fundo, nasceu essa forma de expressão sincrética porém coesa, delicada e insinuante na qual nos reconhecíamos.


Com o lançamento, em 1997, do álbum “Sobrevivendo no Inferno” dos Racionais MC’s, nossa canção revelou-se também vocacionada para traduzir uma luta nada conciliatória: a dos negros da periferia que, propondo um recorte aguerrido não integracionista, punham em xeque nossa autoimagem.
Mas eu não percebia nada disso naquele ano: tinha 17 e já me lançara numa vertigem composicional que, por um lado, intensificava tensões harmónicas e acentuava angulosidades melódicas e, por outro, estimulava a plurivocidade dos versos.


Parecia-me evidente que meu caminho não era a recusa, e sim o patenteamento de procedimentos muitas vezes latentes em velhos chorões, sambistas, emboladores e violeiros, nos vissungos, ijexás, maracatus e sambas de roda, em Gonzagão, nas marchinhas e frevos, no samba canção, em Caymmi, na bossa nova, em Baden, Edu, Chico, Paulinho da Viola, Jorge Ben, nas inesgotáveis tropicálias de Caetano, Gil, Mutantes e Tom Zé, no monumental Clube da Esquina, em Dominguinhos, Moraes, Egberto, Djavan, Bosco e Blanc. E em Elomar (cuja imaginação soltou a minha para além de fronteiras urbanas) e Guinga (cuja musicalidade me fez conhecer os meandros do violão).


Quando, mais tarde, reouvi os Racionais, o tal “barroquismo” de meu trabalho já estava registado em três álbuns nascidos da fome de inserir-me em todas aquelas linhagens, mas, em verdade, reveladores de uma fissura entre a força expressiva da obra e a receção dos ouvintes. Noutras palavras, atirei na continuidade que vi e acertei no impasse que não vi.


Acontece que o impasse não era apenas meu: inúmeros cancionistas de minha geração também o experimentavam. Constituímos um “caso específico”. Traços de radical originalidade nascem, em nossas criações, do desencanto, pois sabemos (ou intuímos) que o Brasil – que gerara uma música popular a um só tempo profunda e comunicativa – já pouco admite sínteses, consonâncias, pactos conciliatórios.


Talvez por isso tantas dobras, desvios, evasões, paroxismos. Barroco.
Talvez por isso a saudade de fluidas linhas translúcidas desenhando a utopia de uma nova civilização morena e atlântica. Nostalgia.


O Brasil está agora num transe da violência, que eu clarivisionava do fundo de uma cegueira lírica, e que os Racionais desde sempre sofreram na própria carne.


Eles já sabiam que o cerco das milícias se fecharia sobre a sociedade; eu, quando muito, sentia que os contratos da social-democracia não regiam meus labirintos.


Penso que os cancionistas contemporâneos doravante teremos que enfrentar essa questão.
Quanto a mim, agora sim me sinto livre para divisar outros futuros não menos meus, como por exemplo aquele em que será das mulheres o protagonismo do gesto artístico. Um texto como esse, por razões óbvias, parecerá então às leitoras atentas, insuficiente.


E finalmente mereceremos o canto de Clementina de Jesus.

Thiago Amud

cantor, compositor, arranjador e guitarrista brasileiro

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