Morre último tripulante do avião que deitou bomba nuclear sobre Hiroshima

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Algum tempo depois dos bombardeamentos atómicos em Hiroshima e Nagasaki, Theodore Van Kirk visitou a segunda cidade. Reparou que nas paredes havia sombras negras, de pessoas que tinham morrido incineradas. Décadas mais tarde, perguntaram-lhe o que sentira. Nada, respondeu ele, limitara-se a constatar o efeito físico. Como militar, haviam-no treinado para bombardear cidades, e se se deixasse emocionar não poderia ser eficaz. Quanto à sua participação direta no horror de Hiroshima, também não estava arrependido.

Apesar dos 80 mil mortos no momento do impacto e dos mais de cem mil que haveria a seguir, apesar da era que então se inaugurou, ele jamais vacilou: “Lamento o que fizemos naquele dia? Não senhor, não lamento. Nunca pedi desculpa e nunca pedirei. A nossa missão era terminar a II Guerra Mundial. Simples como isso”.

Van Kirk, toda a vida conhecido pela alcunha ‘Dutch’, morreu ontem com 93 anos numa residência assistida na Geórgia. Era o último membro sobrevivente da tripulação do “Enola Gay”, o avião que a 6 de agosto de 1945 largou a bomba atómica sobre Hiroshima.

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Muito menos conhecido do que Paul Tibbets, o piloto da missão, ainda assim era convidado com frequência para relembrar em público. O seu papel a bordo, como navegador, fora discreto, e durante anos ‘Dutch’ tivera a relutância comum de tantos militares em contar as suas histórias de guerra. Um dos seus quatro filhos conta que só aos dez anos soube da presença do seu pai no “Enola Gay”.

Bem entrado na meia-idade, Van Kirk deixou-se finalmente convencer e começou a ir a escolas. Talvez a solidão fosse um fator – a sua mulher, com quem se casara muito novo, morrera em 1975 – mas ele também achava que era importante corrigir a ignorância histórica dos jovens americanos. “Se não tivéssemos deitado aquela bomba”, insistia, “os japoneses de modo algum se teriam rendido. Haveria que invadir o país, e o saldo em mortes seria inimaginável (…) Eles tinham sido ensinados a lutar até ao último homem, e ter-nos-iam combatido com paus e pedras (…) Não salvámos apenas vidas americanas, mas também japonesas”.

O debate sobre as armas atómicas começou nessa altura e continuou até hoje, apesar de nunca mais ter sido lançada nenhuma. Van Kirk dizia que gostaria de as ver abolidas, “mas enquanto o inimigo tiver uma eu prefiro que tenhamos duas”.

Mesmo antes de Hiroshima, ele já tinha visto muita guerra. Nascido na Pensilvânia em 1921, planeara ser médico mas alistou-se na Força Aérea logo em 1941, quando os EUA entraram na guerra. Participou em bombardeamentos da Alemanha como membro de um famoso esquadrão de B-17s, e foi aí que conheceu Tibbets, o qual mais tarde o convidou para integrar a equipa que levaria o primeiro fruto do secretíssimo Projecto Manhattan até ao Japão. Nessa altura Van Kirk ainda não sabia do que se tratava, mas semanas ou meses antes do dia decisivo já estava inteirado. Teria sido preciso ser estúpido para não perceber, explicou mais tarde.

No dia da missão, Van Kirk e os seus camaradas partiram das Ilhas Marianas no seu B-29 adaptado, transportando a bomba de urânio com o nome de código Little Boy (a de Nagasaki, que usava plutónio, era Fat Boy). A viagem duraria mais de seis horas. Uma vez em Hiroshima, localizaram o lugar designado para o lançamento. Às 8h15, hora local, largaram a bomba. Como esta não explodiu logo, chegaram a pensar que se avariara, mas ao fim de 43 segundos – tempo que Little Boy demorou a cair dez quilómetros até quase ao solo – veio a detonação.

“O avião saltou e fez um som como o de uma folha de metal a estalar”, contaria Kirk. “Pouco depois da segunda onda, virámo-nos para onde podíamos olhar e ver a nuvem, onde tinha estado Hiroshima (…) A cidade inteira estava coberta com fumo e poeira e porcaria. Descrevo-a como um pote de alcatrão negro a ferver. Podia ver-se fogos a arder nas margens da cidade”.

O seu sentimento imediato foi, se não de exultação, pelo menos de alívio: a bomba tinha funcionado, a guerra ia acabar. No regresso, os tripulantes foram recebidos com uma pequena multidão de generais e almirantes. Houve logo condecorações, e haveria mais ao longo dos anos. Mas Van Kirk deixou o exército em 1946. Voltou à universidade, onde já havia estado de passagem, para estudar química. Uma vez licenciado, arranjou emprego na DuPont e ficou lá 35 anos, até se reformar. Só recentemente aceitou contar a sua história num livro, mas a relutância não teve a ver com estar traumatizado.

Para ele como para os outros, a missão de 6 de agosto de 1945 fora trabalho, nada mais. Ninguém ficou com o sono perturbado, garantia Van Kirk, ninguém foi ao psicólogo, todos haviam casado e tido filhos. Vidas tão normais como podiam ser, e algumas delas bastante longas. A de ‘Dutch’ chegou agora ao fim, num ambiente tranquilo e com a família à sua volta.

RE

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