A exposição perante do Museu da Assembleia da República abre com um relógio de bolso com caixa de ouro maciço e mostrador de prata. Alguém parou o tempo com o ponteiro das horas sobre o número 1 e o ponteiro dos minutos a marcar a hora certa sobre o número 12.
Embora seja uma peça apreciável da indústria relojoeira não é a precisão helvética nem aos metais que o compõem a quem deve o seu ingresso no museu. O relógio marca a «hora zero» da República.
Na noite de 4 de dezembro de 1910, Mendes Cabeçadas, à altura segundo tenente, fazia parte da guarnição do Adamastor, e tinha sido incumbido pelo diretório republicano de ordenar os primeiros disparos que dariam início à sublevação militar contra a Monarquia.
Sublevado o Adamastor, Mendes Cabeçadas terá consultado o relógio, que lhe foi oferecido pelo pai e o acompanhou toda a vida, e à hora acordada mandou fazer fogo por 3 vezes. Fundeado no Tejo, o cruzado, deu sinal para o início das manobras das tropas, em terra, que culminariam com a implantação da República.
Na Fundação Mário Soares, guarda-se o registo magnético com a gravação original da «senha» do 25 de Abril de 1974, gravado às 18.00, do dia 24, para ser transmitido no programa «Limite», da Rádio renascença, às 00h20, como confirmação do início das operações militares que levaram ao derrube da ditadura.
O alinhamento da gravação foi combinado por Carlos Albino com Manuel Tomás, então realizador de sonoplastia do programa e que foi o único a saber para que se destinava o registo magnético. Do alinhamento constam 2 poemas de Carlos Albino e a canção de José Afonso «Grândola Vila Morena».
No dia 23 Álvaro Guerra, elemento de ligação, pede a Carlos Albino a transmissão da canção «Venham mais cinco», mas, por estar proibida pela censura interna da Rádio Renascença são-lhe sugeridas outras músicas, entre as quais «Grândola». No dia seguinte é-lhe comunicada a escolha definitiva de «Grândola Vila Morena» como senha para o movimento militar.
Carlos Albino garante a transmissão e, como garantia, adquire outro exemplar do disco «Cantigas de Maio». Na tarde desse dia (24 de abril) encontra-se com Manuel Tomás.
Ajoelhados na Igreja de S. João de Brito, enquanto fingem rezar, combinam todos os pormenores técnicos da senha.
Mais tarde Leite Vasconcelos é convocado por Manuel Tomás para “gravar poemas” enquanto Carlos Albino escreve textos para serem visados pelo censor.
Obtida a necessária autorização, tanto para os textos como para o alinhamento, às 20h00, Leite de Vasconcelos, desconhecendo o que se estava a passar, grava os textos. Aos 20 minutos e 19 segundos, do dia 25 de abril, arrancou a fita com a senha.
Mendes Cabeçadas e Carlos Albino são dois algarvios. Poderá ter sido uma coincidência da história o facto de caber a estes dois conterrâneos o protagonismo das senhas das duas revoluções democráticas do século XX.
Pensar que o mundo se resolve de acasos, e por acasos, evita a reflexão, o exame de consciência, o recuo, a assunção do erro.
A vitória do Chega no Algarve, nas últimas legislativas, pode ter sido, também, um acidente da história. É preferível olhar para os resultados assim. Ganharam aqui como poderiam ter ganho em qualquer outro lugar.
Se o facto de dois algarvios terem desencadeado a revolução republicana e a revolução de abril, pouco ou nada significar para os algarvios enquanto «património de liberdade» por que razão havemos de tirar ilações maiores destas eleições.
Sabemos que quem não cuida da liberdade estende a mão ao despotismo.
E se os votos das últimas eleições foram, também eles, a «senha» para uma regressão em marcha?