O cavaleiro Rui Valente: de pirata farense a corsário do reino

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Quem hoje visita a capela gótica de São Domingos, na Sé de Faro, depara-se com a arca tumular de Rui Valente, cavaleiro que desejou possuir estátua jacente naquela igreja, sendo representado de armadura “asim como como andaua na guerra dos mouros” (ANTT, Capelas da Coroa, liv. 1, fls. 315v-317v). É, portanto, esta estátua jacente, encontrada durante a campanha de restauro levada a cabo pela DGEMN, a dar origem à publicação de “A Capela de São Domingos e o monumento funerário de Rui Valente na Sé de Faro”, artigo de José Custódio Vieira da Silva publicado no Nº 24 da revista Monumentos. Ora, o que os visitantes que contemplam esta arca tumular desconhecem, é que o cavaleiro representado na estátua jacente era, na realidade, um conhecido pirata farense.

Caravela portuguesa na representação do castelo de São Jorge da Mina publicada no Civitates Orbis Terrarum, de Georg Braun (1572)

De facto, foi durante a redacção de “Homens de Faro na Casa Senhorial do Infante D. Henrique (século XV)”, artigo que brevemente iremos dar à estampa no Vol. XLIV dos Anais do Município de Faro, que procurámos reconstituir a micro-memória de Rui Valente, deparando-nos com documentos que revelaram a sua actividade pirática. Com efeito, a documentação sobre este indivíduo à guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo denuncia a grande importância social granjeada por este cavaleiro da casa do infante D. Henrique e proprietário de azenhas e fornos localizados nos arrabaldes da “villa e termo de Faarom” (Liv. 6 de Odiana, fl. 218). Importância social, aliás, sustentada por uma vasta rede de apaniguados (Chancelaria D. Afonso V, liv. 2, fl. 39), como podemos comprovar pela licença de 30 de Maio de 1449 “pera trijnta homeens seus que possam trazer suas armas per todos nossos rregnos, de noute e de dia(Chancelaria de D. Afonso V, liv. 8, fl. 142).

Como é sabido, os principais intervenientes na exploração do Atlântico foram os criados da casa do infante D. Henrique, sendo que os capitães das caravelas e demais embarcações eram, na sua maioria, escudeiros, cavaleiros ou outros dependentes da sua casa senhorial. É, desde logo, o caso de Rui Valente, que era armador e capitão de caravelas usadas na guerra contra os mouros e em acções de pirataria. De facto, esta sua actividade esteve mesmo na origem de alguns percalços com a lei, e de que é exemplo a ordem de prisão emitida em 1451 pelo corregedor do Algarve: “quando Ruy Vallente chegara com a presa que fez, que elles com outros mujtos o forom ver e que, estando na sua naao, que veera sobre o dicto Ruy Vallente o nosso corregedor do Algarue, rrequerendolhe que sse desse a prisom e rrequerendo a todollos que com elle estavam que logo sse ssaissem (…) nem sse poderom ssayr, por o dicto Ruy Vallente os nom leixar sair “ (Chancelaria de D. Afonso V, liv. 11, fls. 124-128v).

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Do excerto que acima transcrevemos podemos tecer algumas considerações. Antes de mais, que Rui Valente possuía uma nau com que praticava acções de pirataria. Referência que se reveste de grande interesse, já que estas embarcações, contrariamente às caravelas (os barcos de guerra do séc. XV), eram essencialmente utilizadas para transporte de mercadorias. No entanto, podiam ser transformadas em barcos de guerra sempre que as circunstâncias o exigissem, sendo que o seu bordo mais alto facilitava a abordagem a barcos mais baixos e dificultava o movimento inverso. Outra das ideias que devemos reter é a aparente popularidade de Rui Valente, já que as presas por ele feitas constituíam motivo de interesse e curiosidade para os farenses, que não se coibiam de subir a bordo para as apreciar. Refira-se, aliás, que o documento que nos revela desta situação é, na realidade, uma carta de “perdão a João Rodrigues e a João da Costa, moradores em Faro, por haverem entrado em a nau de Rui Valente, quando este chegara com a presa que fizera” (Chancelaria de D. Afonso V, liv. 11, fls. 124-128v). Vemos, portanto, que os actos depredatórios praticados por Rui Valente eram conhecidos e aparentemente admirados pelos farenses.

Brasão de armas dos Valentes no Livro do Armeiro-Mor, de João do Cró, de 1509. A.N.T.T. Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 20

Por fim, a terceira ideia que devemos reter é que a actividade pirática de Rui Valente não se encontrava protegida pela lei e que constituía uma ilegalidade, o que conduziu ao “aucto que o dicto corregedor sobre esto fizera”. É, portanto, face à necessidade de legalizar a sua actividade pirática que Rui Valente solicitou ao rei o quinto das presas que fizesse com a caravela que tinha armado “para fazer guerra aos mouros e aos inimigos do reino” (Chancelaria de D. Afonso V, liv. 9, fl. 68), pedido a que D. Afonso V anuiu através da carta de privilégio de 16 de Maio de 1463 e que vem legalizar a continuidade da actividade, doravante corsária, deste cavaleiro da casa do infante D. Henrique. Note-se, aliás, que o próprio infante passou a auferir um quinto de tudo o que fosse tomado pelos navios que andassem a patrulhar o Estreito de Gibraltar logo em 25 de Setembro de 1433, e que o regente D. Pedro, em 22 de Outubro de 1443, confirmou-lhe “o quinto e dizimo do que (…) os ditos navios” trouxerem das viagens de exploração ao sul do Cabo Bojador. Vemos, portanto, que a carta de privilégio em que D. Afonso V concede a Rui Valente um quinto das presas que fizesse com a sua caravela se encontrava perfeitamente alinhada com a política do reino após a conquista de Ceuta e que tem paralelo com a actividade corsária desenvolvida pelo capitão D. Pedro de Meneses, evidenciada em documentos como a Chronica do Conde D. Pedro de Menezes, ou com a actividade do navegador Gonçalves Zarco, incumbido de comandar missões de patrulhamento nas costas portuguesas do sul, de modo a defendê-las dos ataques do corso e da pirataria.

Diz-nos Alberto Iria, em O infante D. Henrique no Algarve (estudos inéditos), que Rui Valente serviu com o infante D. Henrique na tomada de Alcácer Ceguer, em 1458. É possível que assim tenha sido, porém, não o conseguimos comprovar. Certo é que foi membro do Conselho de D. Afonso V e provedor da fazenda real no Algarve (Chancelaria de D. Afonso V, liv. 8, fl. 1). Não sabemos exactamente quando faleceu Rui Valente. No entanto, um documento datado de 27 de Março de 1497 refere que D. Afonso V nomeou Diogo de Barros “procurador da fazenda do rei, no Reino do Algarve, à morte do detentor do cargo, Rui Valente” (Chancelaria de D. Manuel I, liv. 30, fl. 23v), o que revela que este pirata farense e corsário do reino faleceu ainda durante o reinado do “Africano”.

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