Primeiro. Um poema de Mário Cesariny, «You are Welcome to Elsinore» onde se lê «e entre nós e as palavras, o nosso dever falar».
Depois. Rodolfo Walsh, jornalista argentino assassinado durante a vigência da Ditadura Militar do General Jorge Videla, precursor do «Novo Jornalismo» onde se afirmaram nomes como Gay Talese, Tom Wolf ou Truman Capote com a obra «A sangue frio».
Não sei dizer quais sãos as razões que determinam os tempos de profunda dificuldade em que a imprensa vive.
Não sei se é por se adensar a ideia de que os jornais, em papel, são um artefacto do passado, se por desacreditarmos a imprensa, sobretudo a local, como instrumento para questionar e alterar a realidade, ou se o sentido mais profundo da crise do jornalismo radica na falência da palavra.
A certeza que tenho é o dever que todos temos de contribuir para uma imprensa independente e livre de pressões políticas e económicas. Aquilo que torna evidente para mim, nestes dias incertos, é o dever que aqueles que têm «a possibilidade da palavra» de continuar a falar. De não ceder ao silêncio ou, julgando fazer valer a sua voz, cair na armadilha do imenso ruído das redes sociais.
Casos como o de Roberto Walsh, instigam-nos a não baixar os braços.
Em, 1977, ano em que foi assassinado, em pleno dia, numa rua de Buenos Aires, a Junta Militar completava um ano à frente do governo. Walsh estava habituado a que a grande imprensa argentina não publicasse as suas reportagens. Curiosamente era entre os títulos de menor circulação que encontrava cumplicidades no seu propósito de denunciar os atropelos e os crimes dos regimes autoritários que governaram o país.
A forma que encontrou de denunciar os desaparecimentos, as prisões, os assassínios e os milhares de exílios que aconteceram durante o primeiro ano de Videla no poder foi difundir as suas reportagens, enviando-as por correio, para as redações dos jornais e para os correspondentes dos média estrangeiros.
Depois distribuía, de forma clandestina e arbitrária, cópias pelos marcos de correio que ia encontrando pelas ruas da cidade.
No dia em que foi emboscado, e morto a tiro, por militares afetos ao regime estava a distribuir uma Carta Aberta onde denunciava os crimes atrozes cometidos pela Junta Militar e a acusava, entre outras coisas da «miséria planificada» que o povo argentino vivia e de «assassinar a possibilidade do processo democrático» através da eliminação de nomes importantes da oposição.
Notável em todos os aspetos a Carta Aberta de Roberto Walsh termina com um parágrafo muito significativo sobre o exercício do jornalismo. “… sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi há muito tempo de dar testemunho em momentos difíceis.”
Perante uma determinação tão grande em combater a ditadura e do seu compromisso com a verdade deixar a agonizar, em liberdade, um dos esteios da democracia faz-me pensar que não somos merecedores do sofrimento e do sangue e do que tantos homens derramaram para vivermos numa sociedade livre.
Não podemos escamotear que o caso de Rodolfo Walsh demonstra a impotência do jornalismo contra o autoritarismo e a violência de estado. No entanto, e apesar de tudo, o nosso dever de falar.
A imprensa pouco utilidade tem perante as ditaduras que a aniquilam ou controlam de acordo com os seus interesses. A imprensa livre é, isso sim, um instrumento privilegiado das democracias.
Absolutamente necessária à sua conservação e melhoramento.
Nestes tempos de ressurgimento de partidos nacionalistas em toda a Europa, da emergência de propostas e de forças contrárias aos valores democráticos, da crise da imprensa e da manipulação crescente da informação, a responsabilidade dos cidadãos e dos jornalistas é maior.
A cada um compete, na medida das suas possibilidades e capacidades, contribuir para uma sociedade mais informada, justa e solidária. Não haja dúvidas: a imprensa tem um papel fundamental numa sociedade livre.
Que outra coisa podemos fazer para sermos merecedores da abnegação de José Barão, para quem a vida não foi suficiente para ver o restabelecimento da Liberdade – cuja senha colocada por Carlos Albino, no programa Limite, foi o passo inicial -, ou do empenho de Fernando Reis, que à frente deste jornal, tanto
se esforçou por conservá-la inteira e pura.
A liberdade. Que outra coisa poderia…
«Entre nós e as palavras há metal fundente/ entre nós e as palavras há hélices que andam/ e podem dar-nos a morte violar-nos tirar/ do mais fundo de nós o mais útil segredo».
Salvador Santos