O porto de Tavira: ninho de corsários no Algarve medievo-cristão

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Conquistada Tavira aos muçulmanos e assinado o Tratado de Badajoz de 1267 que instituiu o Guadiana como fronteira entre o Algarve e a Andaluzia, Tavira viu confirmada a sua incorporação nos domínios da monarquia portuguesa. A documentação à guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo revela que, depois de a Ordem de Santiago renunciar à posse de Tavira, em 1272, a vila foi alvo da atenção administrativa de D. Dinis, passando a vivenciar uma prosperidade económica que a levou a afirmar-se como centro urbano de efectiva relevância no contexto portuário do Algarve medieval. Aliás, afirmação regional que, no entender de historiadores como Oliveira Marques ou Luís Adão da Fonseca, transformou Tavira na única “grande” urbe do primeiro quartel de Trezentos, ainda que com a crescente concorrência de Faro, Silves, Lagos e Loulé.

fig 1
Contrato entre D. Dinis e Manuel Pessanha, de Génova, para este servir como almirante na marinha de guerra portuguesa, em 1 de Fevereiro de 1317. A.N.T.T., Gavetas, Gav. 3, maço 1, Nº 7

Naturalmente que a gradual prosperidade de Tavira não era alheia à sua manifesta dimensão marítima, como podemos confirmar através dos estudos relativos às vilas e cidades portuárias do Algarve medieval. Note-se, aliás, que a dimensão marítima de Tavira remonta a cronologias que recuam a finais da Idade do Bronze e que o cronista muçulmano Ibn Sahib al-Sala, ao escrever sobre Tavira durante o governo de Abdalah Ibn Ubaine, na segunda metade do séc. XII, descreve-a como uma terra de piratas e terra de aventureiros e ladrões. Com a conquista cristã, continuou a ser reconhecida a dimensão marítima de Tavira. De facto, já o foral de 1266 privilegiava os mareantes, atribuindo foro de cavaleiro ao alcaide, ao petintal e a dois espadeleiros por navio, ou seja, aos responsáveis pelo comando, pela reparação e pela manobra, isentando, por outro lado, os homens de pé de servirem nas embarcações do rei contra a sua vontade (Chancelaria de D. Afonso III, liv. 1, fl. 46v). De resto, estes privilégios acabariam por ser ampliados em 1282, ao se transmitirem ao alcaide e aos homens do mar da vila o foro e os costumes dos 96 marinheiros que então configuravam o conto de Lisboa (Chancelaria de D. Dinis, liv. 1, fl. 46v). Assim sendo, não é de estranhar que a documentação relativa ao período medievo-cristão ateste a relação entre a vocação marítima da vila e a sua prosperidade, sustentada pela pesca, pelo comércio e por uma actividade que não tem sido muito considerada pela historiografia nacional: o corso.

O topónimo de Tavira no célebre Atlas Catalão de 1375

De facto, a vocação marítima de Tavira encontrava-se associada à actividade corsária que tinha lugar nas costas do Algarve, região onde se mantinha permanentemente uma esquadra portuguesa desde o reinado de D. Dinis. Note-se que é este soberano que, em 1317, contrata os serviços do almirante Manuel Pessanha para comandar a marinha de guerra portuguesa (Gav. 3, mç 1, Nº 7) e que, em 1319, obtém do papa João XXII a bula Ad ea ex quibus cultus augeatur que institui a Ordem de Cristo (Gav. 7, maço 5, Nº 2), que acabaria por ser estrategicamente aquartelada no castelo de Castro Marim. No ano seguinte, em 1320, é o mesmo papa que, aludindo à acção estratégica de D. Dinis, equipara a armação de galés no Estreito de Gibraltar à cruzada, ideia que é igualmente asseverada por Frei Francisco Brandão ao registar, na Sexta Parte da Monarchia Lvsitana, que D. Dinis:

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ordenou ao seu Almirante Manoel Peçanha que com dobradas forças corresse o Estreito de Gibraltar, & costas de Berberia, o que elle executou com bõs efeittos, aliuiando por esta uia o maior pezo que podia sobreuir ao Reyno de Castella da cammunicação dos Mouros Africanos com os de Granada” (Liv. XIX, Cap. XXXIII).

Pormenor de galé representada no Portugalliae que olim Lusitania, novissima & exactissima descriptio, de Fernando Álvares Seco. B.N.P., C.C. 399 V

Ora, esta força naval não só tinha uma função defensiva como também ofensiva, sendo natural que as costas do Algarve sofressem danos consoante a sua menor ou maior actividade operacional. Se por um lado visava a protecção da navegação contra a actividade da pirataria e a dissuasão de eventuais desembarques nas costas do Algarve, por outro lado visava igualmente a guerra de corso contra os muçulmanos, o que cumpria os objectivos papais quanto ao prosseguimento da cruzada. Nesse contexto, os portos do Algarve oriental como Castro Marim, Cacela e principalmente Tavira, destacavam-se, desde logo, como importantes portos de apoio às esquadras portuguesas. Assim, sendo, apresenta-se perfeitamente natural que a marinha de guerra de D. Dinis recolhesse preferencialmente ao importante porto de Tavira, onde os navios do almirante Manuel Pessanha podiam encontrar guarida e serem abastecidos para darem continuidade à cruzada marítima.

Note-se, por exemplo, que a frota comandada por Estêvão Vaz de Barbuda – que em 1336 foi atacada pelo capitão de Cádis D. Gonçalo Ponce de Marchena (Rui de Pina, Chronica de D. Afonso IV, Cap. XXIX) – actuava no Estreito de Gibraltar, pelo que o porto de Tavira surgia, desde logo, numa das bases logísticas mais próximas deste teatro de operações. Não será de estranhar, portanto, que Tavira abrigasse corsários da coroa portuguesa subalternos do almirante Manuel Pessanha e que em 1336 participasse com recursos na expedição do corsário D. Gonçalo contra as costas de Huelva, no contexto da guerra luso-castelhana de 1336-1339 (Chancelarias Portuguesas: D. Afonso IV, Vol. II, Docs. 133-134). Aliás, como sugerem Luís Adão da Fonseca e José Augusto de Sotto Mayor Pizarro, parece verosímil que outros corsários ao serviço da coroa portuguesa ali se encontrassem estabelecidos no séc. XIV. Recorde-se, por exemplo, que em 15 de Agosto de 1332, D. Afonso IV fez doação ao corsário Afonso Garcia de umas casas derrubadas em Tavira que tinham sido aforadas a outro corsário, Bartolomeu Bernaldes, mas com a condição de serem reconstruidas e habitadas pelo referido Afonso Garcia (Chancelaria de D. Afonso IV, liv. 3, fl. 35v). Todos estes elementos levam-nos, portanto, a concluir a História de Tavira tem um enorme potencial a nível do estudo da actividade corsária, pelo que aqui lançamos o repto aos investigadores da nossa História Militar Naval.

*Historiador

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