O que há de novo no dormitório

Hélder Carrasqueira
Hélder Carrasqueira
Professor na Universidade do Algarve (Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo) e investigador do CiTUR (Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação em Turismo), autor do livro “Hotelaria Internacional”

Todos os anos, no dia de “todos os santos” visito o dormitório. Rotina que se mantém desde há 30 anos, pelo que no passado dia 01 de novembro, disse presente, de novo. E o que vi, o que fui vendo ao longo destes anos, motiva esta partilha.
Naquela vila do barrocal do Algarve, este era em tempos, um grande dia. O dormitório enchia-se de gente que faziam questão de visitar os seus familiares que haviam partido. Gente que vestia seu fato domingueiro, formal e cerimonioso. A presença era intergeracional, sendo comum encontrar gente nova que acompanhava os mais velhos. O espaço tornava-se um jardim, tal a quantidade de flores por todos os sítios para onde olhássemos. A iluminação era geral, sendo raro encontrar um espaço ocupado sem a devida lamparina acesa.
Visitava-se os nossos, os vizinhos, dava-se uma volta e surpreendíamo-nos com fulano e beltrano que já por lá estava.
E depois havia os encontros, únicos por vezes ao longo do ano. Reviam-se familiares que vinham de longe, parentes afastados, amigos de infância e havia cumprimentos e conversa. Um dia de visita aos que já partiram acabava por ser uma festa, contida, de vivos. Nomeadamente quando o tempo já curara a dor.
À porta do dormitório havia várias bancas de venda de flores e outros acessórios da ocasião. As primeiras castanhas assadas. Uns anos fazia frio e vento norte. Outros, calor do verão de S. Martinho temporão. Havia tempo. A vida decorria devagar e o ritual era centenar.
Hoje, muita coisa mudou.
Desde logo, o nº de visitantes que se reduziu para menos de metade. Predominam os velhos entre os visitantes, havendo um claro corte inter geracional, pois os novos já não acompanham os familiares presentes. Reduziram-se substancialmente as flores, nomeadamente as vivas, substituídas pelas de plástico e afins, permanentes. Dão menos trabalho, dizem. O tempo também. O céu está limpo, o calor parece de verão, o sol brilha. Mas em tantos espaços, está escuro, já ninguém lhes coloca e acende as lamparinas. Mas abundam os autocolantes nos vidros, colocados pela junta, ameaçando: este espaço está abandonado e pelo andar, tomamos posse administrativa. É mais ou menos nestes termos.
Resta a energia dos que ainda comparecem. Com ânimo celebram o ritual. Fazem uma pausa de meditação e apreciam o local. Cumprimentam os amigos e conhecidos e conversam. Lamentam-se. A espaços, atendem o omnipresente telemóvel. Vestem-se de forma casual. Caminham devagar. Esperam voltar para o ano. Outros afirmam não querer dar trabalho, um dia, pelo que no final, vão optar pela fábrica das cinzas.
Enfim, parece que este dia e este encontro no dormitório perdeu prosélitos. Também parece evidente que as novas gerações têm dificuldade em lidar com este assunto. Talvez seja aquele problema de não terem tempo. Ou vão perdendo o rumo das referências e o telemóvel não indica para ali. Ou sou eu que estou a ver mal.

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