Pelo Mar Adentro Alimentando o Fumo das Fábricas

"A memória compartilhada é uma forma de não sucumbir ao esquecimento que o tempo acelerado da vida social nos impõe", - Carmen Lúcia Vidas Perez, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil (Fernando Reis)

Faltavam 20 minutos para a meia-noite, para se chegar ao dia 25 de Dezembro, Dia de Natal, portanto, na rua, ainda não se escutava o sempre presente cântico:

«Entrai, entrai pastorinho,
Por este portão sagrado,
Já nasceu o Deus Menino
Numas palhinhas deitado»

Em Vila Real de Santo António, numa rua ou noutra, as lâmpadas se repetiam fundidas. O vento e as fortes chuvada dos dois últimos dias, não permitiam que os Serviços Municipalizados da Câmara, resolvesse os problemas, assim do pé, parta a mão.


Os electricistas André e Lima, estavam de férias e o José Pedro (fusível) tinha ido a Moura, jogar pelo Lusitano, contra o Atlético Clube de Moura. Aliás, ele e o Padesca, este já tinha saído bem tarde da barbearia, foram no carro particular do amigo Toi Parra, Director do Lusitano.


Sálvio e o Estrela, tinham estado no Pisa Canitos, até às tantas, com o amigo Frederico Silva, da Drogaria Silva, e apesar do Senhor Joaquim já estar farto deles, era o Simões, que tomava conta daquela gente, clientes habituais de todas as horas.

Foram dias e dias, noites e noites na vivência cultural e humana do Pisa. Aqui na foto. De costas João Lança, depois de frente, Zeca Romão (Pai), Frederico Silva (Drogaria Silva). Depois de costa, Chico Cavaleiro e de frente, Manuel Popa. (Foto. Roubei ao Zeca Romão)

20 minutos antes da meia-noite, cada um seguiu para o seu lado, possivelmente rumo às suas casas. Diga-se casas onde nada faltava, nem gretas entre as telhas por onde a chuva se pudesse infiltrar.


Noutra rua mais à frente, já se ouviam a vozes do Bartolomeu (Boeira), do Pereirinha e do Alfredo Faxina, para mais uma noite a preparem o pão fresco para o Dia de Natal…


Sálvio, num repente dá de caras com o diálogo entre dois homens. Um era bem visível, estava fardado de polícia, enquanto o outro, vestido com um casado de oleado (eram as impermeáveis de agora, que os pescadores faziam em casa), tinha consigo um petromax e um palangre às costas.


Sávio, Aproximou-se e viu que era o Sabino, o polícia e o Peúgo, diga-se o meu parente peúgo, que ia ao encontro de um outro meu parente, o Patico, para que no aproveitamento da enchente pudessem lançar os aparelhos.
Sabino, o agente da polícia, dizia para o Peúgo:

-Tal é a barcada, que andas na rua, já perto da meia-noite, a passear um petromax.
Peúgo não era homem de zaragatas. Bebia uns copos, como qualquer outro homem, que repartia a vida, entre os três dias por semana na fábrica, e os restantes à pesca no rio, sempre que o rio deixava. Aliás, tinha dias, que o Guadiana também vinha zangado e arrastava tudo o que descia da encosta dos montes.

-Vou para a pesca!, exclamou o meu parente Peúgo, de seu nome, Diogo.

-Para a pesca?, questionou o agente Sabino, para depois acrescentar: – Para a pesca com um caixote às costas e um petromax?
Peúgo. Olhou ao céu para ver as horas. Naquele tempo, o correr da lua, e a noite embora estando fria tinha forte iluminação em forma de lua cheia, pelo que permitia que mais ou menos se soubessem as horas…

-Sim senhor, agente Sabino!, vou para a pesca. Vou se o senhor me deixar ir…
Antes que o Sabino respondesse e, faltavam agora 15 minutos, para se escutar o renovado cântico:

«Entrai, entrai pastorinho,
Por este portão sagrado,
Já nasceu o Deus Menino

Numas palhinhas deitado», Sálvio deu um passo em frente e disse: – Bom noite amigo Sabino (havia um bom conhecimento e uma boa relação entre o Sálvio e o agente Sabino), então não está a ver com o amigo Peúgo vai lançar o Palangre? Que vai para a pesca?
Sabino encostou-se à parede, tirou o boné (claro o boné de polícia), acossou a cabeça, manteve-se meio minuto calado, o que para o Peúgo, que queria ir para a pesca, parecia uma eternidade e depois respondeu:

-Então se o Peúgo vai para a pesca, para onde é que tu vais?
Sálvio, que tinha sempre a resposta afiada, olhou para o Sabino, e respondeu: – Vim dar-lhe uma ajuda. Não gosto de ver um polícia sozinho na rua e mesmo para um polícia, a terra tem falta de luzes e é muito perigoso. Eu acho que o melhor é o amigo Sabino também ir para casa…


Sabino ficou em silêncio e agora juntava-se ao Peúgo, ao Sabino e ao Sálvio, o Zé Aranha, que no seu habitual caminhar de braços semiabertos, como quem anda na rua a fazer peito, sem dizer água vai, isto é, boa noite, atirou logo a matar:

Amigo Sabino, pela conversa e pelo equilíbrio que procura para se encostar à parede, já vi que lhe entrou água na casa da máquina. Aliás, esta era resposta que o Zé Aranha dava, quando alguém lhe perguntava: – Zé já vais bêbado?, e ele respondia: – Bêbada. Vai mas é a bardamerda. Não vês que me entrou água na casa da máquina…


Sabino voltava-se agora para o Zé Aranha, enquanto o amigo Peúgo, o meu parente Diogo aproveitando o virar de costas do Sabino, dava corda às botas de água (designação que os pescadores davam às botas de borracha) e lá foi em direcção ao Cais da Lota, onde se encontrava o Patico, que também era meu parente, com o bote encostado ao cais e à conversa, com o Orlando, que estava de serviço à Bomba da Sacor, sediada entre o Cais da Lota e o Cais do Tenório…


Patico, mal viu o Peúgo gritou: – Mó, Peúgo, não me digas que foste passar a consoada à Pensão Mateus e o Zé Anjinho (era o dono da Pensão Mateus), te correu à pedrada… Olha, salta mas é para o bote e vamos deixar o barco descer até à Casinha do Porto (Casinha do porto era onde se apanhava o barco para ir para Ayamonte) e ali orientamos as coisas. Peúgo retorquiu: – Acho melhor, remarmos até ao Rival (era um rebocador da empresa Mason And Barry, que explorava a Mina de São Domingos) …e aí largaremos os aparelhos.


A rua ainda mexia apesar da noite estar a meia luz. Havia malta que tinha saído do cine-foz, onde foram ver o Pai Tirano. O amigo Sabino, agora a andar sozinho, já tinha perdido de vista o meu parente Diogo, encalhava por instantes, mas sem dizer nada com o Zé Peliar, o Pelita, o Bocha e o Sobral, que também iam lançar uns palangres…

Os espanhóis nunca davam nem prego, nem estopa para o desassoreamento da Barra do Guadiana. Era a draga da empresa Mason And Barry, que fazia o serviço. Mas o maior e irremediável assoreamento tem sido feito ao longo dos último quase 50 anos. Aniquilaram o futuro… (Foto. Roubei ao Zeca Romão)

Lá mais para os lados da muralha, via-se o brilho das luzes do Mira Terra que estava encostado ainda à famosa muralha, a que chamavam de Porto de Vila Real de Santo António. Enquanto um pouco antes, entre o cais da lota e o a Catalina, uma espécie de barco dos pilotos da barra, estava fundeada a draga Mowe, da Mason And Barry, que em breve retomaria a dragagem. Diga-se, da chamada Barra do Guadiana, que servia a entrada e saída da frota portuguesa e espanhola, mas nuestros hermanos, estavam-se nas tintas para a barra, e por onde entravam grandes navios ou vapores, como nós lhe chamávamos, que encostavam ao Porto de Vila Real de Santo António, para carregar mármore, palha, conservas, cortiça, alfarroba ou subiam até ao Pomarão para acolher o minério que vinha da Mina de São Domingos.


Era quase meia-noite. Estava mesmo à porta o dia 25 de Dezembro e o anúncio dos cantares do nasce niño, pelas portas mais importantes da Vila, como a Senhor Mateus, da ourivesaria, do Dr. Raul Folque, do Dr. José Diogo, veterinário, pai do Paquito, do Zé e do Tó Diogo Tenório e de uma menina de que nunca aprendi o nome, e que moravam na Praça Marques de Pombal. Nunca íamos à do Zé Rita, porque aqui não recebíamos nada e nem abriam a porta. Aliás, havia dias, durante esse período natalício, porque a porta tinha duas manitas para bater, que atávamos um fio à da porta que não abriam e toca a puxar. Não recebíamos nada, mas ríamos muito.
Íamos também ao Senhor José Marques e do Senhor Centeno, ambos despachantes oficiais, à do António Vicente, assim como à do Matias Sanches. Também não íamos à do Cumbrera. Íamos à da Dona Guida, enfermeira e chegávamos a casa bem consolados…

Pelo Mar Adentro alimentando o fumo das fábricas. Um livro que me emociona


Poderá pensar-se que este REMATE CERTEIRO foi escrito há sessenta anos. Enganam-se, foi escrito hoje, dia 26 de Dezembro de 2022, e enquanto escrevo solta-me à memória, desculpem lá a humildade, o meu livro: PELO MAR ADENTRO ALIMENTADO O FUMO DAS FÁBRICA, publicado em 2004 e a segunda edição em 2005, que é o livro que melhor espelha e trata Vila Real de Santo António e as suas gentes, entre 1953 e 1963. E aqui deixo um desafio à CM de Vila Real de Santo António, que publique a 3ª. Edição…


Na mesma ocasião e sobre mesmo e com o título: , escreve Fernando Reis (o meu Mano Velho), Director do Jornal do Algarve: «A memória compartilhada é uma forma de não sucumbir ao esquecimento que o tempo acelerado da vida social nos impõe», – Carmen Lúcia Vidas Perez, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. […] O que mais impressiona nesta obra singular, é a facilidade com que Neto Gomes, num prodigiosos exercício de memória, enumera nomes e conta histórias pessoais, evoca situações e relata pormenores, de um tempo por ele vivido e que, mais de quatro décadas depois, continua bem presente na sua memória […]”


Que 2023 renasça sem perdermos a memória, para que a guerra acabe e que com todos os sacrifícios voltemos a ser felizes e menos egoístas. É que um dia, como diz a Bíblia, todos voltaremos ao pó…

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