Portugal não tem “modelo de negócio”

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“Simplesmente mudar de moeda, sair do euro, poderá ser bom ou mau para Portugal? É uma questão difícil de responder. O verdadeiro problema é o modelo de crescimento económico. Portugal, tal como a Grécia, não tem um modelo de negócio claro”, diz ao Expresso Mark Blyth, autor de “Austeridade – A história de uma ideia perigosa”, publicado este ano nos Estados Unidos e traduzido recentemente para português pela Quetzal . Face ao argumento de que a saída do euro permitiria ao país reganhar liberdade de ação para outras políticas que não são permitidas no quadro de uma zona monetária única, Blyth interroga-se: “Por exemplo, desvalorização da nova moeda para quê? Para exportar o quê? Não é claro. O que nos leva ao tal problema de fundo que tenho apontado – a falha no modelo de crescimento económico”.

Esta falta de “modelo de negócio” é visível desde que a concorrência asiática deu cabo da especialização portuguesa durante o período de transição para a Comunidade Económica Europeia e durante a primeira década de integração. “Nada substitui o anterior modelo”, frisa. A bolha de crédito alimentada pelos países do Norte da União Europeia, e particularmente pela Alemanha, nada resolveu. “Em cima dos diversos problemas estruturais que o país já tinha de falta de produtividade, de alto endividamento privado, de demografia, o adiamento e atraso na resolução do modelo de crescimento é a questão de fundo. E a austeridade, depois da crise, não veio melhorar, mas piorar o problema”, sublinha. “Até o Fundo Monetário Internacional admite as consequências muito negativas para o PIB provocadas pela austeridade”, remata.

Por isso, não vê grande motivo de regozijo com o fim do programa da troika em meados do próximo ano. “Prometeram que se tratava de uma transição, de que as coisas iriam estabilizar. Mas, entretanto, os estragos foram feitos. Com o programa fez-se muito maior estrago no longo prazo do que podem imaginar”, sublinha este escocês de 46 anos, doutorado em Ciência Política pela Universidade de Columbia e que é atualmente professor de Economia Política Internacional no Departamento de Ciência Política na Universidade Brown nos EUA. Em relação ao que virá no pós-troika mantém a interrogação sobre qual a contribuição para criar um novo “modelo de negócio” para o país.

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Blyth veio a Lisboa proferir a intervenção de abertura de uma conferência sobre a austeridade que decorrerá hoje na Faculdade de Direito da Universidade de Direito de Lisboa organizado pelo Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal. Na mesma altura, Eduardo Paz Ferreira, o presidente do instituto, apresentará um volumoso livro intitulado sugestivamente “Austeridade Cura? Austeridade Mata?”, que será debatido por um painel de académicos, incluindo Teodora Cardoso, João Ferreira do Amaral, César das Neves, Francisco Louçã e Ricardo Paes.

Austeridade é incompatível com democracia

O recente livro de Blyth é hoje em dia uma referência na crítica das ideias ligadas à austeridade, recordando que não são novas e que foram aplicadas noutras épocas, em países desenvolvidos, com resultados muito negativos, particularmente nos anos 30 do século passado.

O caso alemão, no final da chamada República de Weimar, ficou como exemplo de antologia da tragédia que resultou da austeridade aplicada pelo chefe do governo Heinrich Bruning, a quem chamavam o “chanceler da fome”. “Espero que não se repita o que aconteceu nos anos 30. É verdade que temos tido mais almofadas de segurança do que naquela altura, apesar da enorme desigualdade na sociedade atual. Mas, depois de cinco anos de austeridade, as almofadas e a riqueza das famílias estão a evaporar-se”, refere-nos.

O que poderá resultar deste desgaste é preocupante: “As democracias não podem operar em austeridade durante muito tempo. As pessoas votam uma vez ou duas se acham que a mudança está no virar da rua. Mas se essa viragem não ocorre, as pessoas perdem a confiança. E, ao perdê-la, olharão para quem lhes dê esperança, mesmo que as promessas sejam perigosas. A democracia mina-se a si própria por causa da austeridade. Abre o flanco a forças de reação”.

Os alemães esqueceram-se do perdão que tiveram

A saída desta situação em Portugal e noutros países periféricos do euro não é fácil. “A crise portuguesa no final do século XIX terminou com uma combinação de bancarrotas com hair-cuts (cortes de cabelo), mas confesso que o meu exemplo favorito do passado é outro – aquele em que uma crise de dívida soberana foi evitada. Na Alemanha nos anos 50 do século XX”, afirma. Blyth recorda: “No início dos anos 50, a economia alemã estava numa situação muito má. Valeu-lhe o perdão de 50% da dívida por parte dos credores, acordado numa conferência em Londres em 1953. O povo alemão deveria lembrar-se desse perdão e não é necessário ser-se católico para acreditar nisso, mas até ajuda”.

Blyth gosta de citar o caso islandês na resposta à crise financeira de 2008. Apesar de ser um pequeníssimo país, o académico retira duas lições: “Quando se faz o contrário do que manda o livro de instruções, não só sobrevivemos, como até prosperamos. E sobretudo não resgatem os bancos, é a mensagem. De uma forma ou de outra, todos acabaremos em bancarrota, mas a única questão é que nível de sofrimento queremos de facto aceitar”.

A forma de lidar com o sector financeiro está, de facto, presente em toda a “leitura” que Blyth faz da gestão desta crise: “Esta crise é uma crise bancária. O problema começa e termina com o sistema financeiro, apesar da camuflagem que foi feita, desviando a atenção dos bancos para os governos a partir de certa altura. Gerou-se um modelo de negócio, o de que o sector financeiro era demasiado grande para falir. Por isso, a crise bancária tem de ser paga pelos membros mais fracos da sociedade em benefício dos mais fortes. Isto é uma forma disfarçada de política de classe. E não sou marxista para chegar a esta conclusão”.

Recorrer à repressão financeira

Ora, tratando-se de uma crise bancária, o Banco Central Europeu (BCE) é, na zona euro, a entidade adequada para a resolver, acrescenta. “Paradoxalmente, o BCE é o único que pode resolver o problema na zona euro, que não é uma crise da dívida soberana. Pode-se cortar o gasto público até ao limite, mas isso nunca resolverá uma crise bancária. Quando Jean-Claude Trichet saiu da presidência do BCE e entrou Mário Draghi [em novembro de 2011], este começou por fazer o que tinha de ser feito”, sublinha. Se o BCE avançar inclusive para uma política de taxas de juro (nominais) negativas – um aspeto que já foi discutido em relação aos depósitos que os bancos da zona euro colocam nos cofres do BCE e que atualmente são remunerados a 0% – “as precondições para uma política de repressão financeira ficarão no terreno”. Repressão financeira é um termo técnico, aparentemente pejorativo, que reúne um conjunto de políticas em direção a “grupos cativos” que dispõem de riqueza, como bancos, fundos de pensões e outros credores de longo prazo, no sentido de os levar a aplicar recursos na dívida pública, desta forma garantindo o refinanciamento desta, aliviando o fardo sobre os contribuintes e a “desvalorização interna”.

No entanto, Mark Blyth acha que, para além da política monetária, é indispensável uma política fiscal global na Europa. Um dos caminhos, dentro do portefólio da “repressão financeira”, é, por exemplo, um imposto extraordinário sobre a riqueza acima de determinado nível, uma hipótese que o próprio FMI referiu no “Fiscal Monitor” recentemente, sem fazer qualquer recomendação formal nesse sentido. Outro será uma ação conjugada em direção aos offshores. Gabriel Zucman, da Escola de Economia de Paris, avaliou, este ano, em 8% a riqueza global das famílias parqueada em paraísos fiscais, 75% da qual não está registada. “Na verdade, um estudo do ano passado de James Henry do Tax Justice Network – ‘O Preço do Offshore revisitado’ – calculou que mais de 30 biliões de dólares estão escondidos em offshores. Depois das declarações do G20 [em setembro passado] é provável que venhamos a ter mais ação neste sentido no próximo ano”, diz Blyth, não sem recorrer à ironia em relação ao seu próprio país, o Reino Unido: “David Cameron [o primeiro ministro britânico] garantiu que se obrigará os paraísos fiscais a cooperar, mas logo acrescentou oferecendo uma redução de impostos para o caso”.

Jorge Nascimento Rodrigues (Rede Expresso)

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