Remate certeiro: Agora que vivemos escondidos em bunkers a céu aberto

Agora que vivemos escondidos em bunkers a céu aberto, tenho muitas saudades do meu pai

São cada vez piores os sentimentos que nos rodeiam, diante da quase irreversível escalada de transformações que o mundo sofre, cujo fio condutor da tragédia que se avizinha está descontroladamente cheio de linhas vermelhas. E qual das linhas é a mais vermelha, cujos sinais tão perturbadores, que não nos deixam margens de PENSAMENTO, apesar do eco quase ensurdecedor das orações, por acreditarmos, que vão ficando cada vez mais longe de nós, os dois grandes suportes da vida: A esperança e a fé.

E porque são tão frágeis as nossas decisões, que no desespero de nos agarrarmos à tábua que está mais próxima, acabamos por nos deixar enrolar pelas vozes dos que percebem de todas as coisas, marginais da vida séria, agora tornados especialistas.

Até as palavras dos governantes, ontem trincheiras fortificadas, hoje não passam de bunkers a céu aberto e com sinais luminosos indicando da nossa presença, o aumentar da nossa pobreza.

De nada vale soletrarmos até aprendermos, ou até nos arrependermos de tanto saber, para nos anunciarmos como pessoas conscientes, feitos de uma formação útil, que se desprenda do ser vulnerável que somos e que esgravatando agora novos estímulos, nos permitam sentirmos que estamos a perder o mundo irracional em que vivíamos.

O pior é que já não nos conseguimos concentrar diante dos dias que correm, porque a vulnerabilidade de que falávamos está agora tão presente, que é ela que nos domina, nos dá as ordens e nesta cegueira de aceitação, nem percebemos que nos perdemos de nós próprios.

E nesta fase da nossa vida, de quando em vez nos chegam sinais, que nos levam sem sabermos, por caminhos que já nos foram familiares, que pensávamos perdidos e que agora nos parecem tão reais, que por vezes nem sabemos se este reerguer da memória, onde procuramos chegar retirando pedra a pedra, tudo o que nos separava da distância do tempo, só nos fazem bem.

E nesta viagem, numa espécie de salpicos de regresso às origens, descubro em mim, o meu pai, o velho e ternurento Manuel Gomes Néné, aqui e ali apelidado de Manuel Azul.

Manuel Gomes Nené

Pai tenho saudades tuas. Não deixámos nada para dizer um ou outro. Por isso, agora, sinto-me como se fosse tu

Vejo lado a lado com um homem bom, único. Até descubro no seu andar o meu andar e vejo no meu olhar, o seu próprio olhar.

Costumamos dizer, quando alguém se separa de nós, depois de uma longa vivência juntos, que deixamos tanta coisa para dizer uns aos outros.

No que se refere ao meu pai, porque eu sou ele em cada movimento, em cada passo, em cada gesto de ver, olhar e descobrir, que dissemos tudo o que tínhamos para dizer, porque quando se fala em todos os momentos com amor, com paixão, com lealdade, com gratidão, nunca deixamos nada para dizer.

O seu sorriso, é agora o meu sorriso. O meu olhar para dentro de mim próprio, é agora o seu próprio olhar.

Aqui nesta viagem, a um dos muitos capítulos da minha memória, não existem ses, as dúvidas, as interrogações, os reparos, mesmos a que nos esmagam pelas angústias e pelas saudades, não existem. É tudo bem claro.

Sei que ele caminha a meu lado. Escuto com nitidez o seu respirar, as suas caricias, raras mas belas, porque o meu velhote, era mais um homem de braços, do que de abraços, e daí, reviver em cada instante, o seu braço no ar, em cada momento de despedida, cheio de incertezas, porque cada despedida, era sempre a última.

A forma como coloco o boné, é tão igual, que sinto que é ele a fazê-lo.

Em cada momento de todos os momentos, caminho a seu lado, levo comigo os seus passos, o seu olhar, como quem procura recuperar histórias, palavras, sinais. Coisas simples, que sempre dissemos e fizemos um ao outro.

Mas não são as palavras ou as hipóteses de cumplicidades, que nos levam um ao encontro do outro. Antes a saudade e o orgulho e sem saber como, vou repetindo os seus gestos, o seu olhar, as suas dúvidas, os seus protestos, o seu permanente aviso, de dedo encolhido apontado, em explicação de surdina, mas com a voz clara: – Manuel! Aquele não presta para nada.

E não é que mais tarde, agora já com os meus catorze anos, vinha mesmo a descobrir, que aquele e outros aqueles, não prestavam mesmo para nada.

Quando caminho, quando escrevo, quando penso, quando escuto, quando vejo, levo comigo o seu caminhar, a sua escrita (o meu velhote só escrevia em letra de forma, como ele dizia), o seu pensamento, o seu escutar, o seu olhar de descoberta.

Também levo comigo os seus medos, os seus bocejos, as suas gargalhadas, o seu humor refinado e a sua afectividade.

Quando caminho sinto-o tão a meu lado, que me sinto protegido, ainda que com a minha idade de agora, a sua mesma idade então, ele enfrentasse dificuldades que eu ainda não sinto, mas vejo nelas, uma força renascida como se lhe devesse uma outra qualidade de vida.

Ele tinha agora um andar mais cansado e mais sofrido. Tinha tremenda falta de ouvido, mas mesmo assim, foi sempre senhor de si próprio, das suas vontades, de grande educação, fazendo das palavras escritas e ditas uma eterna liberdade de dizer e de apregoar.

Francisco Rodrigues Tenório, o homem das barbas, que fundou a fábrica do Tenório

Foi um eterno, educado e profissionalíssimo operário conserveiro, com as funções de cravador na Fábrica do Tenório, da velha e extinta. Direi mesmo arrasadamente extinta, porque não ficou pedra sobre pedra, num verdadeiro vexame a Francisco Rodrigues Tenório, o seu fundador, como escreve Ataíde Oliveira, na Monografia de Vila Real de Santo António, a 1 de Janeiro de 1908

“o honrado industrial, a cuja memória é consagrado o presente livro, nasceu em Villa Nueva de Los Castilejos (província de Huelva) – (Andaluzia) – Hespanha […]

Villa Real de Santo António, sem distinção de partidos nem de classes, curvou-se comovida e respeitosa em frente das cinzas do seu querido amigo, e acompanhou-as em imponente préstito até ao cemitério, sendo os operários e os pobres os que deram a nota mais sentida e angustiosa em pranto comovente pela perda do seu patrão, do seu pai e do seu querido proetctor! Naquella expansão de lagrimas e de lamentos, que dos operários e dos pobres se comunicavam ás primeiras classes sociaes, viu-se bem quanto o extinto Tenorio era adorado.[…]”

E aqui, na fábrica do Tenório, em cuja creche cresci, vivi momento incríveis com o meu velhote. Coisas que me marcaram para todo o seu sempre, e que agora, neste tempo que passa, caminho lado a lado com ele por todos estes lugares, por sítios agora tornados em pó, em nada, mas neste caminhar com ele, nada está ausente, nada. Todos os lugares ainda estão edificados. Curioso, até vejo a chaminé a fumegar e a sirene a tocar a avisar as operárias e os operários, que a fábrica tinha metido peixe.

Respiro o ar das nossas pescarias, no cais do Tenório e na Cabeça Alta, onde caminhava com ele de mão dada, ainda com a maré vazia e regressávamos nos respirar dos primeiros sinais da enchente. Um dia, no final da tarde, apesar da maré mansa de Agosto, lá íamos ficando num baixo, a que chamávamos de gola.

Ainda tenho o som da sua respiração ofegante e o cansaço da sua voz: Manuel pega no cestinho, o pai vai-te pôr aos meus ombros. E com a água a passar acima da cintura do meu velhote, lá chegamos a terra firme.

Também não levei comigo a sua paixão pela pesca. Por esta paz, como ele dizia, horas e horas seguidas, sem um único sinal de um peixe, que pelo menos desorientado pudesse bater com a cabeça, num do dois anzois da pesca do meu velhote.

Nunca regressou a casa sem peixe e alguns chegou a ir vender à Pensão Mateus. Belos robalos.

Colocar um rebite era uma espécie de fortaleza, onde nem um dique se aventuraria a passar.

Porém, já não levo comigo a sua arte, as suas mãos milagrosas, a sua força à dor, a sua paciência para aturar bestas, que nunca chegarão a bestiais.

A única coisa, que não tive tempo para lhe dizer, quando abalou aos 91 anos, sentado a descansar, neste caso para a eternidade, na casa da minha irmã Lina, que agora apelido de Maria Neto, que era o nome da minha saudosa mãe, é que tenho muitas saudades dele, não apenas como ser humano, mas como pai e pelo que representou para todos nós.

Quando ando na rua, agora já não sou eu que caminhar, agora é o meu pai…

Neto Gomes

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