Remate certeiro: Tem coisas que só a memória regista

Tem coisas que só a memória regista
Eu tinha quatro anos e ela quarenta e quarenta

Temos momentos nas nossas vidas, em que num repente, um pequeno gesto ou uma peça de roupa pendurada na corda, como se fazia antigamente, sobretudo nas zonas urbanas, com uma cana a meio, tendo como suporte um prego espetado na parede, e logo um turbilhão de momentos mágicos nos acontecem e damos por nós sentados em redor de uma lareira cujo carvão (bolas de carvão), que comprávamos à do Senhor José do carvão), que colocávamos numa velha bacia do lavatório, se mantinha muito tempo quente, devido à cobertura de papel de prata assente nas brasas…

Roupa estendida na corda tendo como suporte uma cana amparada pelo parede. Outros tempos


E a nossa casa era assim, e nem vale a pena jogarmos às escondidas ou folhearmos de vinte em vinte páginas o livro da vida, que guardamos nos arquivos da nossa memória…


São por vezes esses acontecimentos que badalam por dentro das nossas cabeças, sem um bate no coração, antes a linha que percorremos até chegarmos aqui e de que tanto nos orgulhamos.


Mas existe um momento, que aliás, ainda ando por alguns arquivos em busca de respostas mais concretas, porque nas questões de assertividade elas caminham todos os dias a meu lado, que foi a descoberta tardia, quando a minha saudosa mãe, a Maria Neto, por indicação médica, se deslocou a Lisboa, onde no Hospital dos Capuchos, foi operada às cataratas.


Eu tinha quatro anos e ela tinha quarenta e quatro, e desse internamento nos Capuchos só vim saber mais tarde, todavia, por razão deste acontecimento, nada mudou na rotina dos meus dias, com excepção, de um momento que muito me alegravam, talvez por sentir os afectos de minha mãe, quando após o banhito, cuja banheira era um alguidar enorme – porque naqueles tempos a vida era diferente, mas também éramos muito felizes, mas era no meu alguidar de paixões, como mais adiante explicarei – minha mãe, após o banho e antes de me vestir a camisola interior, creio que a marca era interloque (interloque em português), beijava-me o peito e fazia um sinal da cruz, cujo ritual passou a ser feito pela minha irmã Lina, até que a minha mãe voltou do Hospital.


Era um ritual que marcava muito os nossos dias e que certamente levaria mais tarde a minha irmã Maria, e integrar a equipa de catequistas da Igreja Paroquial de Vila Real de Santo António. Diga-se, apenas como voluntária, embora se interpretasse como pertencente à JOC. De tal forma a separação das suas funções e falsas coligações eram tão evidentes, que ela colaborava na loja da D. Alice Silva, que ficava à quina da Praça Marques de Pombal e ao lado existia a Casa Raposa…A D. Alice Silva, diga-se, que não sei se era da esquerda ou da direita. Sei que era contra o Regime, contra o Estado Novo, e foi membro destacado na Vila, no apoio à candidatura de Humberto Delgado. Ora compreende-se que uma pessoa assim, não iria facilitar a vida a uma colaboradora, se esta lhe revelasse desconfianças, só porque era catequista…


Pois, é verdade, que o alguidar gigante, era diariamente um afluente do Rio Guadiana, pois o meu saudoso pai, – porque de manhã eu andava na Creche da Fábrica Tenório, na parte de tarde, ficava em casa, agora sob o olhar de uma das minhas três irmãs, onde no grande alguidar cheio de água colocava quatro barquinhos de cortiça feitos pelo meu pai, o Manuel Gomes Nené (Manuel Azul), dois deles à vela, e eu levava ali horas e horas, falando sozinho, inventando o nome dos barcos e dali saia já com as mãos enrugadas de tanto tempo permanecerem na água.


Todos os dias, após o almoço, eu voltava ao «mar», ao meu rio, e porque o alguidar era colocado na chamada casa de fora, e com as portas abertas, porque naquele tempo as casas tinham sempre as portas abertas, eu encostava um dos bracitos ao poial da porta e ia espreitando a vida da rua. As carroças que passavam, umas carregadas de atum em direcção à fábrica Aliança, outras anunciando a venda de água ou leite. A venda de tremoços ou carroças carregadas de areia, cujas arcos do rodado afundavam a meia calçada, meio maquedame, e deixavam metade da areia pelas ruas do caminho…

Outra vez a culpa a morrer solteira

A Impresa, o jovem que queria matar todos os professores e alunos e o Porto-Sporting


Mas da infância feliz, sem medos, regressamos ao alto do tempo que agora passa, onde a IMPRENSA volta a ser o epicentro da nossa consciência ou a permanente MATRACAR, sobre o que somos, em quem acreditamos, e aqui estamos a deixar de fora a esfera política sobre a qual rebola o país e sob a qual sentimos que nos esmagam os sonhos.


Uma IMPRENSA, gravemente contraditória sobre o que dizem que o FMI descobriu e a PJ parou (sem sabermos se parou pelas raízes), impedindo o tal ataque terrorista.


Uma IMPRENSA, que diz tudo sobre o jovem, que mostra o quarto, que mostra a sua perigosidade como terrorista, e a outra IMPRENSA, que escreve por escrever, e logo emergem os sábios, os psicólogos, os ESPECIALISTAS.


Uma IMPRENSA que até entrevista um estudante que NADA SABE e o REITOR que parece o super-homem, a dizer que não vai a acontecer nada.
Uma IMPRENSA que diz que ele odiava os colegas. Outra que diz que ele ia levar, se calhar dentro de um caso de plástico, todo o artesanal que tinha em casa e depois em cinco minutos, acabava com o professor de que não gostava.


Outra IMPRENSA, diz que o ataque era tão selectivo que só matava alunos.


POR FAVOR, PAREM. PAREM. PAREM. PARÉM


Mas como é que se pode parar, quando as imagens mostram o que se passou no Dragão, em 90% da fase aguda da memória mais vergonhosa que aconteceu num campo de futebol. Mesmo assim, uma imprensa, que agora, sobretudo a Norte de Vila Franca de Xira, se calhar não leram O Jogo, da última segunda-feira, que não só branqueiam tudo o que aconteceu no relvado, mas se instalaram apenas no que disse Varandas…


O Jogo, nem chama à capa a bala, que dizem ter sido guardada pelo Pepe…o pior é o chamado silêncio dos inocentes, pois o Secretário de Estado do Desporto, a Liga de Clubes, A Federação Portuguesa de Futebol…e o próprio Marques Mendes, tão assertivo na brasa à sua sardinha, foram incapazes de deixar os seus sermões…


POR FAVOR, PAREM, PAREM, PAREM, PAREM…


E antes de entrar neste circo com que todos os dias ESBARRAMOS, e assente na minha infância, eu estava a escrever sobre o Senhor José do Carvão. Lembram-se? Onde iam comprar as bolas de carvão ou o chisco para alimentar a braseira, e outra vez a IMPRENSA enfia-nos com um artigo do Senhor Eng.º Mário Guedes, que escreve, no Observador, não sei se vou entender ou não, que a falta de água, sim, ainda que se deva à pouca pluviosidade, tem a ver com o encerramento das centrais de carvão, o que levou ao aumento do consumo.


Estou confuso, mas felizmente não devo estar sozinho. Aliás, eu nunca gosto de estra sozinho…


Mas isto são ditos de especialistas, gente que sabe, e eu nem sei se devo acreditar ou não, ou se é um modo de ver as coisas ou se é uma moda…

Os santinhos da minha irmã e os cromos da bola


Pois na minha infância íamos à Botica, agora vamos à Farmácia.


Na minha infância íamos ao Açougue, agora vamos ao Talho ou a Charcutaria.


Antigamente íamos ao Bairro Operário, agora vamos aos Apartamentos Sociais.


Mas também íamos ao Café Portugal, ao Pic Nic, às Janelas Verdes. Ir às Janelas Verdes era o máximo. O Senhor Luís Feliz da Silva era uma pessoa fantástica, fascinante.


Nesse tempo vivíamos de portas abertas. O Mundo era todo arejado, até parecia que não tinha nem portas, nem janelas. Mas os especialistas de agora, sempre em pisos alcatifados e arejados pelos silenciosos resfriadores, que quando ao som da nossa voz, passa para a secção dos calores, nem sabem o mundo que já tivemos…


Íamos às verduras, porque o Mercado, era o mercado da verdura, à da D. Brites, ao então tio Alhinho ou ao Albino, das bananas.


Íamos ao Pisa, que vendia de tudo, à loja do Zeca, pai do Zé Martinho, do Narciso, do Manel, e nem sei de quantos mais, que tinha trabalhado na loja do Cumbrera, que também vendia tudo, e vendia quase tudo fiado. E havia ainda o Senhor António Vicente, estabelecimento misto, comércio de arroz, açúcar, feijão, sabão, palha de aço, potassa tudo embrulhado em papel de traça. E no outro lado a venda, onde comercializava vinho aos copos, um vinho com cheiro a sapatos.


E eramos felizes. Não recebíamos dinheiro pelos dentes, pelos olhos, pelos ouvidos, mas também ninguém recebia. Não sei se os tempos agora projectam outro pensar, só que o apoio social não é igual. As pessoas, que têm ADSE recebem quase tudo, enquanto os outros são escravos da Constituição da República Portuguesa. Mas ninguém se importa. Repito, espero e desejo que a maioria absoluta, seja, como demos conta há duas semanas, e como escreveu o António Aleixo, uma DOUTRINA GRANDE.


E volto a alguns momentos da minha infância. Um dia ia a caminho da Igreja, com a minha irmã Maria, a chamada mana do meio, que ainda havia e há, a Lina, a que agora chamo de Maria Neto e a Francisca. A minha Francisquinha.

Anos 50, cartaz do filme de Sofia Loren Mulheres e Luzes


De repente passei junto ao Café Império, onde numa das paredes expunham os filmes que iam passar no Cine-Foz e ao olhar para os quadros, parei de repente. Era um filme com a Sofia Loren (Mulheres e Luzes). E eu até tinha uma prima chamada Luzia, que era linda, parecida com a Sofia Loren, que era casada com o Chico, o saudoso Chico, irmão do saudoso Afonso, o Bucha. Alto… Isto já parece uma página de necrologia.


Pois com o esticão que dei na mão da minha Maria, ela deixou cair o catecismo, e entre os santinhos que se espalharam pela praça Marquês de Pombal, lá estavam, além da adorada Sãozinha, muitos cromos da bola, como o Arsénio, Mokuna, Pacheco, um macaísta que jogava no Sporting, Palmeiro, Ben David, Rogério, Espírito Santo.


A minha Maria olhou para mim, manteve o seu sorriso maroto e disparou meigamente: – Meu malandro. Isto não se faz à mana. Então este são os teus santinhos…?

Mas isto é para grávidas?


Hoje ficamos por aqui. Gostava falar da minha amiga Beatriz Cabrita, médica, que um dia destes nos deixou. Partiu com o silêncio a que se entregou quase na última década.


Um dia, em Salvador da Baia, no nosso primeiro pequeno-almoço, olhou para o grupo, era eu o Mano Velho, a Luísa e minha Maria dos Aflitos e disse-nos: Tomem este comprimido. Aqui a água não é nada boa.


E eu perguntei: Beatriz, mas isto é para grávidas? A gargalhada do Mano Velho, do Fernando Reis subiu ao ponto mais alto do Hotel. Havemos de voltar ao tema…

Neto Gomes

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