Retalhos do meu sentir: O Algarve, os algarvios e os autores não caónicos

Tenho muitos retalhos escritos. Bocados de páginas soltas, começadas a meio, inacabadas que, todas juntas, não são muito mais do que expressão dos meus mosaicos internos que nelas se materializam.


A propósito da triste notícia da partida, no início do mês, do escritor e conceitado crítico literário Júlio Conrado, natural de Olhão, e da nota de pesar que a Ministra da Cultura Graça Fonseca emitiu, destacando a transversalidade e marca deixada na história da literatura portuguesa contemporânea, o meu retalho desta semana recai sobre as palavras: as escritas, as cuidadas e as amadas.


Tive o privilégio de crescer rodeada de palavras. O meu avô Manuel que falava em verso quando bem disposto, a minha mãe Lina que escreveu uma biografia manuescrita a cada um dos seus familiares, a minha prima Raquel Palermo (hoje grande autora, com alguns prémios no currículo, de séries de televisão, novelas, peças de teatro, livros,…) que, já em miúda, escrevia páginas umas atrás das outras e, obviamente, o meu tio Neto Gomes, cujo manuscrito original do seu livro de poemas permaneceu comigo até algum adulto o achar demasiado precioso para estar nas mãos de uma criança e ter, misteriosamente, desaparecido da minha mesa de cabeceira.


E foi justamente neste livro de poesia ESCUTEM, a par do SHALOM, e do NAS TUAS ASAS GAIVOTA, da minha querida e saudosa professora Lolita Ramirez, que o meu prazer pela leitura começou. Neles aprendi a valorizar, precocemente, a saudade que se pode ter quando se pronuncia a palavra mãe, o calor no peito que sente ao ler nas entrelinhas da paixão, bem como valores como a humildade, o altruísmo e o humanismo.


Estes meus grandes mestres, tais como muitos outros por esse Algarve fora, nunca tiveram assento nos livros escolares. São autores, para mim, não canónicos, “autores portugueses, com qualidade literária, mas que não foram adotados pelos programas escolares nem publicados em editores com expressão nacional” como diz outra das minhas queridas porfessoras, Adriana Nogueira, na sua reflexão intitulada “A criação literária e o Algarve, no Algarve ou do Algarve?”.


O Algarve esteve afastado, isolado, do poder central, e dos grandes núcleos intelectuais e do saber, até à chegada do combóio e da Universidade do Algarve. No entanto, os algarvios continuam a lutar, a par com outras regiões ditas periféricas, pela valorização dos seus talentos nas mais diversas áreas. A título de exemplo, e já que falamos de comboios, não me parece que se o Mestre Manuel Cabanas, ferroviário de profissão, tem nascido e morrido numa região mais acima do que nesta em que nos encontramos, que a sua obra, ímpar no panorama nacional e europeu, estivesse dotada ao esquecimento em que se encontra no ano em passaram 120 anos sobre o seu nascimento. Não é o talento, são os lobbies dos centros de decisão.


Luís Ene, Lídia Jorge, Fernando Esteves Pinto, Pedro Jubilot, António Ramos Rosa, Teresa Rita Lopes, Nuno Júdice, António Aleixo, Diamantino Piloto, Rogério Silva e tantos outros são algarvios de nascença ou de presença. Escolheram este território como seu e merecem ser citados, ser estudados, ser lidos, que os seus nomes apareçam nas páginas dos jornais, nos textos escolares, nos telejornais e também nas notas dos ministérios, mas que os alunos, professores e leitores saibam quem eles são, quando assim tiver que ser.

Sara Gomes Brito

*Mestre em Literatura Comparada, Pós Graduada em Multiculturas e Gestão de Relações Interculturais

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