Rumo aos 67 anos (5) (fechando com Vicente Campinas)

...em MEIAS TINTAS SER FRÁGIL, UM LIVRO VINDO DO PEITO E DO CORAÇÃO DE UMA MULHER... (Luísa Currito)

Página 3 do Jornal do Algarve, de 30 de março de 1974, com um artigo de António Vicente Campinas, «Meias Tintas». Já passaram 50 anos. Tinha o JA dezoito

A 30 de Março de 1974, quando já se assomava a aurora da Revolução de Abril, e na edição em que o Jornal do Algarve consagrava o seu 18.º aniversário, A. Vicente Campina1, um dos maiores antifascistas da minha terra (Vila Real de Santo António), empurrava para a página 3, em Ponte de Mira e com o título: MEIAS TINTAS, a crónica, que 50 anos depois, voltamos a dar vida, rescrevendo: «Tenho um boné de pala. Um bonito boné. Um boné de pele de qualquer bicho. De qualquer bicho oriental. Um boné vindo de Moscovo. Uma pequenina pala toda gira dá-lhe um ar de graça, de ligeireza, de simpatia. (Evidentemente, os leitores têm de dar certo desconto as estas impressões. Ela são a do proprietário do citado boné). Adiante. E esse boné tem ainda outras virtudes. Uma delas, por exemplo, é a de proteger as orelhas. E nos países muito frios, só quem os tem é que pode apreciar a enorme a utilidade dessas vantagens suplementares, de certos bonés. Como este meu, de que aqui tece os elogios.

Nestas semanas de Inverno, o frio é companheiro habitual destas paragens. O termómetro desce até sete ou oito (abaixo de zero, é bom lembrar, por causa das confusões). E, por vezes, alcança ainda um número mais elevado (em negativo, é claro) ultrapassando os dez e mais mesmo…

Ora, num destes últimos dias, de boné atarracado no alto dá cabeça, ia eu cogitando. Creio que cogitava nas dificuldades económicas e sociais, agravadas de semana para semana, de hora para hora, mesmo, quando o metro parou na estação de Etoile. (Ia dizer Charles de Gaulle. Ou vice-versa, não importa. Ponham o nome que puserem, a esta enorme e bela praça onde se eleva o Arco do Triunfo, ela continuará a ser, para quase toda a gente, a Praça da Estrela …). Curioso, como sempre (quem é para aí que se diz isento deste defeito… ou desta virtude?) inspeccionei um grupo que me pareceu familiar. Tinham entrado, numa pequena corrida, no momento em que o comboio se aprestava a retomar a marcha. E riram, dessa peripécia. E troçaram mutuamente das suas pequenas dificuldades. Teria sido pelo seu aspecto exterior, que me prendi de interesse por esses quatro jovens passageiros? Ou por ter-me apercebido que a sua linguagem me era familiar, quando a barulheira do veículo e das gentes que o enchiam me permitia entender-lhes a voz? Eu ia sentado. Tinha tido a sorte de encontrar um lugar sentado. Aquela hora, um lugar sentado, nos metros, é uma sorte. E que sorte! Eu tinha-a tido, nesse dia. Talvez como pequenina compensação da pouca sorte das outras (numerosas) vezes, em que atravesso a cidade, de fio a pavio, de pé, com os inconvenientes que uma viagem dessas, assim, representa para qualquer passageiro. Depressa me dei conta que era eu o motivo central do interesse, dos jovens. Sobretudo, da mais bonita das duas moças. Mas também os companheiros participavam nas gargalhadas. E era a jóia morena, de um moreno torrado e macio, que parecia reger o grupo, nessas manifestações de alegria ruidosa.

E reavivar, sempre com redobrado entusiasmo, as risadas dos seus companheiros. Intrigado, prestei mais atenção. Tomei um outro lugar, que se me tinha deparado, com a partida de alguém situado mais perto do grupinho. E pude entender, com menos dificuldade que até então, quanto dizia a beleza amulatada.

-Reparem bem na elegância do boné! E as formas bizarras que ele tem! E o tipo todo pimpão, com essa coisa gira na cabeça! Não é, meu bem? Até parece o Zé Pangão, vocês se estão lembrando, seus moços?

-Ah, brasileiros dum catano! E sorri para mim mesmo, por ter topado ali, a dois passos, gente da minha terra! Da minha terra, não, mas da minha língua!

Liguei-me mais ao grupo, à sua conversação, às suas reacções. Mesmo sabendo estar sendo alvo da troça dos jovens brincalhões do outro lado do mar …Sorri, à socapa, de maneira a não dar a impressão que os compreendia. E eles foram-se alargando, na faladoria, cada qual metendo o bedelho, para que a risota fosse atiçada, a cada síncope de fraqueza.

-Seus moços! Querem saber o que ele me parece? – explodiu a face acaramelada da bonita moça, sacudindo os companheiros. – Alguém com um penico no alto da cabeça!

Aí, as gargalhadas parece terem atingido o auge! Dois dos jovens apoiavam as mãos ao ventre, certamente para impedir que eles pudessem transformar-se em monstruosos balões. Um outro enxugava os olhos, que o riso em excesso, apela sempre as lágrimas. E jogavam-me olhadela, de soslaio, crentes que eu era estrangeiro à sua língua.

Quando o metro ia parando para a estação do meu destino, ergui-me com ar cúmplice. Sorri-lhes abertamente.

E disse-lhes, num português bem timbrado, que todo o brasileiro tem a obrigação, de compreender:

-Então, boa noite, amigos! · Boa viagem. Divirtam-se bem.

O ar encavacado e estúpido que ainda consegui ver-lhes na face, fez-me cócegas no riso. E dei uma gargalhada que, pela certa, deve tê-los acompanhado durante o resto dessa viagem».

A mesa que esteve na apresentação do livro, com o Dr. Álvaro Araújo, Presidente da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, a presidir à cerimónia

SER FRÁGIL, um livro vindo do peito e do coração de uma mulher
Luísa Currito, há muito que vinha prometendo e no passado dia 29 de Fevereiro, algo que só se comemora de quatro em quatro anos, apresentou aquele que ficará inscrito como o seu primeiro livro.

Coube-nos a hora de sermos premiados com a responsabilidade de falarmos sobre o livro, com o título Ser Frágil. E do que dissemos, tendo também como companheiro e jornada, o Dr. Álvaro Araújo, que teceu rasgados elogios à autora, ficam aqui alguns simples salpicos: «Parabéns, Luísa Currito, por com esta pedrada no charco, por teres tido a coragem, numa terra tão longe das causas, de te juntares a um elevado número de homens e mulheres, de António Aleixo a José Cruz, passando por tantos outros e outras, como Rosa Mendes, António Cabrita, José Carlos Barros, Luís Romão, Hugo Cavaco, António Horta Correia e António Vicente Campinas e não me levem a mal por aparecer aqui, nesta galeria, por terem rasgado as fragilidades e a força deselegante como tratavam a nossa periferia intelectual e humana. E deste modo conseguirem, como tu agora, Luísa Currito, darem à estampa as suas visões da vida, os seus desassossegos, as suas ambições e olhando sempre aos mais vulneráveis, pela poesia, pela investigação, pela literatura, pelo conto, pela biografia, pela história e pela memória, não receando, como tu fazes agora, libertarem-se das suas fragilidades, pelo combate desigual que sempre se lhes deparou.

Luísa Currito, autora de SER FRÁGIL, falando sobre o seu livro. A seu lado o autor do Remate Certeiro, que fez a apresentação da obra

Parabéns pela publicação de SER FRÁGIL, que quem não conhece o livro e o seu conteúdo, vai descobrir no final de cada página, um dos templos que ergues, da gratidão/ingratidão à solidão, num arco de 15 figuras escritas, que são o teu retrato de corpo inteiro.

E este é o melhor anúncio que podemos fazer, hoje, quando caminhamos para as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. E o País anda na rua, lutando cada vez mais contra as margens de um totalitarismo, há anos impensável e que julgávamos ter derrubado…do que arranjarmos soluções para as vulnerabilidades que sofremos.

50 anos depois, até às nossas palavras são frágeis porque, quando as escutam, ninguém lhes liga nenhuma. É comos enão contassem. Não valessem…e deste modo, que começo por abrir as primeiras páginas do livro…

Quando Ser Frágil, em livro, vindo do peito e do coração de uma mulher, que foi filha, mãe, professora e agora avó, que sem andar aos saltos, como muitas e muitos, que todos nós conhecemos, também foi fidelíssima aos seus princípios, também porque é um ser frágil, nos valores que sempre entendeu defender, também como democrata, que seria os melhores para a sua terra, para a sua gente e para o seu País…

E num livro feito de recados, seria importante deixar mais alguns:

SER FRÁGIL, É não recearmos em consciência o confronto, dos desafios que a sociedade hoje nos pede e sem termos medo de darmos o salto para o outro lado, em busca de nós próprios, sem recearmos, DE NADA SABERMOS, o que vamos encontrar no outro lado da vida.

Todos nós, que estamos aqui nesta Biblioteca, que consagra a vida e a obra de António Vicente Campinas, um cidadão invulgar, vamos seguramente encontrar neste livro, muitos traços de todos nós, das nossas vidas, dos nossos comportamentos, das nossas acções e reacções e, de igual modo, da forma desprezante, como continuamos a tratar os nossos semelhantes…

Que audácia, Luísa Currito, lançares um livro, com o titulo SER FRÁGIL, num dia em que o País anda na rua, a apregoar o que não foi feito, dizendo que agora é que vai ser feito. Que anda na rua como que adivinhando o lançamento do teu livro e já um pouco por todos os lugares, se fala dos mais vulneráveis, dos que nunca encontraram o destino, dos que se perderam na esperança, de que ser frágil, também é uma espécie de ressurreição, que nos leva a acreditar.

E esta frontalidade, mesmo em tempo de campanha eleitoral, onde se discuta mais o estilo, a cor dos olhos e, como diz a canção DE JORGE PALMA: ENQUANTO HOUVER ESTRADA PARA ANDAR… nada me obriga a jogar às escondidas – uma brincadeira que caiu em desuso – para dizer, que eu também me reconheço em todas as páginas deste livro. UM livro, repito, e se calhar vou voltar a repetir-me, COM GENTE DENTRO…

Este livro é uma espécie da revisão da matéria dada, que não fomos capazes de perceber, não que estivéssemos com a cabeça na lua, mas antes, porque a nossa cabeça está sempre tão cheia desilusões, maus-tratos, canalhices, falsidades, como se num repente, todos os homens tivessem sido formatados pelas idiotices em que assenta a humanidade.

Vivemos um vazio enorme nas nossas vidas, e este livro abre-nos novas esperanças, arquitecta em nós uma nova esperança, assente na filosofia que ainda temos forças para ajudarmos TODOS, a combater as desigualdades, a falta de compromissos, a verdade que num instante, se transforma em mentira.

Confessou-me a Luísa, a Dr.ª Luísa, que este livro não tinha nada a ver com política. Mas há alguma coisa que se faça no dia a dia das nossas vidas, que não tenha a ver com a política?

Não temos volta a dar e o nosso apelo é para que os jovens, os antigos alunos da Dr.ª Luísa Currito, para que leiam este livro, porque nem sempre o instalar de um andaime significa que se vá construir uma grande obra… e este livro, mesmo que não tenha os andaimes onde em cada piso se lê: Ilusão, sonhos, Ciúme, Idade, família, etc… Será sempre, imagine-se, um livro de intervenção, didáctico, influenciador, simples, de leitura clara e objectiva, que tanto tem retratos de um livro infantil, com uma capa que nos apetece mergulhar na infância e ao mesmo tempo, uma espécie de guia para a nossa vida…

Parabéns, Luísa Currito. Obrigado pelo convite, sobretudo, pela honra e pelo privilégio de me teres feito regressar à minha terra e de rever amigos…

A Nota de Rodapé e da responsabilidade do autor do Remate Certeiro: António Vicente Campinas, Patrono da Biblioteca Municipal de Vila Real de Santo António e o Senhor Campinas, da Livraria Ibéria.

1 António Vicente Campinas, Patrono da Biblioteca Municipal de Vila Real de Santo António e o Senhor Campinas, da Livraria Ibéria.

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