Sismo de Marrocos – em abono da verdade

Tenho seguido com grande atenção tudo o que se tem dito (e escrito) sobre o sismo de que atingiu a região de Marraquexe, Marrocos, a 8 de Setembro. As imagens não são muito diferentes que das que em tempos também vimos de sismos de grande magnitude na Turquia ou em Itália. Simplesmente, Marrocos é-nos muito próximo e há a crença que a chamada “arquitectura de terra” que temos em Portugal (taipa, adobes e tabique) é uma herança dos 700 anos que árabes e mouros cá teriam deixado.

Assim, esta devastação poderia ser prenúncio do que por cá poderia (na verdade, poderá) acontecer em caso de um sismo de idêntica intensidade. Valerá a pena pôr alguns pontos em alguns “ii”! A primeira coisa que gostaria de afirmar, embora não seja muito relevante neste momento, é que este tipo de construção não é uma herança árabe ou moura: ela decorre da utilização de materiais abundantes e fáceis de utilizar, sendo por isso muito primitiva. Na verdade, escavações arqueológicas reconhecem a existência de terra em construções bem mais antigas, e mesmo todas as descrições e tratados de construção romanos (genericamente escritos por volta do Século I) falam destes tipos de construção, havendo até autores que louvam a forma exemplar como eles são executados na (então) Província da Lusitânia (por exemplo, Vitruvio ou Plínio, o Velho)! Ora tais afirmações, escritas cerca de 600 anos antes de mouros e árabes terem ocupado a Península Ibérica, excluem liminarmente a hipótese de tais tipos de construção serem exclusivamente devidos à sua presença.

Acredito, contudo, que terá havido miscigenação de técnicas, influenciando-se reciprocamente todos os povos do Mediterrâneo, de Norte a Sul, de Este a Oeste. E isto ter-se-á verificado desde muito antes dos próprios romanos (por fenícios, cartagineses, e até por povos do norte da Europa).

Voltemos agora à segurança deste tipo de construção. Não pretendo afirmar que a construção de terra seja mais segura quanto a de betão armado, mas reconheço que, em caso de sismo, preferiria estar numa construção de terra bem construída que numa construção de betão armado mal construída! E aqui começamos a aflorar o verdadeiro problema: a qualidade do que é construído! Na verdade, muitas das imagens que vi na televisão e jornais, mostram pilares partidos, blocos maciços com varões de ferros retorcidos, partes de paredes de tijolos furados (iguais aos que vemos nas nossas construções), placas de piso derrubadas: nada disto é construção de terra! Veem-se também paredes integralmente caídas, muitas paredes com enormes fendas e muitas parcialmente derrubadas. Tudo isto poderá ser terra.

Há ainda outras imagens que nos mostram uma amálgama de tudo isto que parece prenunciar a utilização de novas técnicas (cimento, ferro, etc.) na reparação de velhas construções de terra. É habitual assistirmos a este tipo de miscelânea! Se existe uma parede de alvenaria (de terra ou mesmo de pedra) e nela se quer fazer uma abertura (porta, janela), imediatamente surge a utilização de vigotas de betão armado, de tijolo furado e cimento para tudo ligar! Contudo, o modo de funcionamento das alvenarias tradicionais e do betão armado é muito antagónico. Para não entrar em mais considerações, a alvenaria tradicional é porosa e tende a inchar (com a chuva) no inverno, enquanto o betão armado é impermeável e tende a contrair (com o frio). Criam-se assim, com o tempo, “ocos” de acomodação deste diferente modo de funcionamento que vão debilitando a ligação entre ambos os materiais. Em suma, “cada macaco no seu galho” e, se se pretende comparar os dois tipos de construção, então comparem-se dentro dos mesmos parâmetros: com a mesma idade, com o mesmo cuidado técnico de concepção, com o mesmo rigor de construção. Aí sim, poderemos tirar conclusões válidas e não condenar por aparente incapacidade qualquer tipo de tecnologia, só porque há lobbies poderosos que sobrepõem os seus próprios interesses à simples e objectiva análise. Ninguém pretende substituir a arquitectura de betão armado pela taipa ou pelo adobe, pelo menos no que se refere a pontes ou altos edifícios, mas, já agora, gostava que fosse tornado público por quanto tempo um engenheiro civil pode garantir o perfeito desempenho de um edifício em betão. Estamos, naturalmente, a falar de um edifício bem projectado e bem construído o que, como é sabido, não corresponde à maior parte do betão (nem da taipa, nem do abobe) que por aí vemos. Que eu saiba, não se falará em mais de 70 ou 80 anos sem profundas operações de conservação e restauro. É que do lado da terra, a Alhambra de Granada, o Palácio Ducal de Vila Viçosa ou a Torre da Coutubia, em Marraquexe, falaremos sempre em mais de 500 anos de bom desempenho! Sei que esta última torre sofreu danos com o sismo, apresentando rachas após o violento abanão a que foi sujeita, mas o que se pretende de qualquer construção antissísmica é que ela não mate gente e a Torre não matou!

Nota: Recebi através do meu colega Mohammed Hamdoun, co-autor do RPCT2011 (Regulamento Parasísmico de Construções de Terra 2011, de Marrocos), referente ao comportamento, durante este sismo, de construções executadas pela Cooperativa Bellarej de Marraquexe, sob responsabilidade de Oussama Moukmir, já em consonância com o RPCT2011, a comunicação que a seguir reproduzo:

“Estava muito ansioso pelo que, logo no sábado corri a dar a volta a todas as minhas construções. Mas, à parte pequenas fissuras, eles não mexeram” (O. Moukmir)

*Arquiteto, antigo presidente do Comité Internacional do ICOMOS para a Arquitectura de Terra

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