TEODOMIRO NETO

 POLITICAmente

1962 – Natal em Paris

 

A NOITE chegou nessa contínua neblina gélida que tanto parece encantar os parisienses pela quadra natalícia!

Entro e saio dos magazins, no frenesim das compras, no ruído clássico dos cânticos natalícios, enquanto os consumidores indiferentes a tudo, e, na frase feita, dita e redita de Joyeus Nöel.

Já havia feito os percursos das gares de Lyon e Saint Lazare, no consolo em escutar o dizer ligeiro e cantante do Sul, ou na forte pronúncia brejeira do Norte.

Tornei às galerias; às Praças famosas de Paris; ao Trocadero, na admiração iluminada da Torre Eiffel. Mas nada me prendia, me detinha naquela noite de tanta saudade.

Passei por Notre Dame, fixei-me no Pórtico Gótico dos degolados. Desci às pontes aos irmãos clochards, indiferentes a tudo: Natal, religiões, poderes, pessoas. Uma labareda de cartões e jornais, iluminando-lhes os rostos desprotegidos como desinteressados, em que só um Caravaggio teria a força de os reviver na eternidade de um museu em tintas renascentistas.

Vou percorrendo a Ille Sait-Louis, onde o poeta Neruda ia escrever as suas Odas Elementales e matar saudades de Santiago, no seu exílio: yo soy ela poeta hijo/de pobres, padre, tio, primo, hermano carnal/de los pobres, de todos/de mi patria y las otras,/de los pobres que vivem junto al rio..

Por momentos ocupo o seu banco gélido e desconfortável como a noite. Apoio o rosto na concha das mãos. Recordo o meu Natal de pais e de irmãos simples, fraterno e amplo com os demais. Ali sentado, onde o rio Sena vai correndo tão manso, como sujo, refletido nas luzes excessivas em vermelhos natalícios. E eu recordando o Natal que ficou, que mo tiraram, como a tantos milhares de portugueses. Mesmo encadeado pelo esplendor das luzes, não tenho Natal…

Uma aragem forte e gélida desperta-me. Recomeço a caminhada sem projecto; marcho sem tino e destino. Vou correndo as margens do Sena, contando as inúmeras pontes, belas e desiguais, numa cidade de multidões, agora vazia, desabitada. A cidade é toda minha, sem mim. Só tenho as numerosas estátuas de pedra e bronze, que ao longo do percurso parecem animar-me; mas como eu estão carregadas de silêncios, querendo animar a minha imaginação. Lá estar o Char d’Apollon, cavalos que parecem alados e que me levam na magia do meu querer proibido. Ainda, Marly, garboso, me força o olhar, na beleza do seu nu, segurando as crinas dos seus potentes cavalos em galope.

Quase, sem me aperceber, entro no Metro de Saint-Maurice. Tomo a carruagen imensa para um pequeno número de passageiros, no serviço público que presta. Uma senhora idosa, vestindo à sua moda, Chanel? Talvez! Fotografo, visual: Um homem muito jovem, todo de negro, cabelo em liberdade, segura um livro abandonado no colo.

Um padre, penso; um intelectual, por que não; ou um revolucionário, um sem família, sem interesse, imagino. Desvio o olhar: uma jovem fuma sem cessar, mirando-se na imagem que o vidro da carruagem lhe devolve. É atraente à primeira vista. Olha-me, num olhar vítreo, esboçando um sorriso morto. Deixo-o estar no enigma da minha curiosidade. Um ruído, mais à frente, desperta-me a atenção. Avanço pela carruagem.

Ao fundo, as vozes vêm mais sonoras, mais vivas. Aproximo-me. As palavras confortam-me. Pardon, digo. Sento-me defronte do homem que faz o casal. Ele mais velho que a mulher. Parecem-me pai e filha. O homem faz-me uma saudação: mão ao peito e um sorriso largo. Ela, mais comedida, rasga um breve esboço, escondendo o rosto com a ponta do xaile cinza de riscas negras. O homem dirige-se em árabe.

Faço um gesto que não compreendo. Respondo-lhe Je suis portugais (sou português). A jovem descobre o rosto mediterrâneo, olhando o homem numa ternura filial. Reparo, então, que um bebé dorme no seu regaço e que desperta. Mon fils (meu filho), aponta-me o homem, num orgulho árabe, muito simples e honrado.

Pergunto-lhe como se chama o pequenino: Ali Ben Hadj. Responde-me babado, enquanto a jovem mãe prepara o filho para o peito. Logo o homem ajeita, cobrindo o peito da mulher com o xaile, conduzindo a conversa para que o meu olhar se desvie acto de amamentação. Depois, abre um sabo de cabedal que imana um forte odor a pele de camelo. Retira uma marmita. Põe a mesa sobre os joelhos e convida-me à ceia.

Couscous, diz-me, acrescentando: C’est trés bon! (muito bom). Reparo a composição do manjar: farinha de trigo aglomerada em milho, legumes, carnes diversas. C’est la sauce, referindo-se ao molho que lhe escorria pelos cantos da boca. O homem sorria largo; o molho escorrendo entre palavras que eu entendia. Mange! (come), insistia num convite. Irrecusável. Faço como o homem, retiro um pedaço de carne, entre os dedos, que levo à boca. E o homem feliz prenuncia-se à minha ignorância, olhando a mulher e o bebé. A jovem mulher traduz perante o meu embaraço: Joyeus Nöel. Chértiens, nous, palestine (Feliz Natal, cristãos, nós, Palestina). Feliz Natal, respondo-lhes, agradecido, na língua de João de Deus. Ambos riram. O bebé Ali Ben Hadj perneou em breve esgar.

A senhora idosa enrolando o colo numa pele de raposa, passou enojada, apertando o nariz em protesto. Voilá, des arabes (Árabes).

Quando os pais do pequenino Hadj saíram, não lhes perguntei se eram de Belém!

E continuei a viagem, de ida e retorno a Paris, numa Consoada de gente pacífica… e sacrificada.

 

Nota: O autor não escreveu o artigo ao abrigo do novo acordo ortográfico

 

Deixe um comentário

Exclusivos

Lar de Demências e Alzheimer em Castro Marim acompanha a elite das neurociências

Maria Joaquina Lourenço, com os seus quase 90 anos, vai caminhando devagar, com o...
00:33:23

Entrevista a Mário Centeno

Recebemos o ilustre conterrâneo, Professor Mário Centeno nas nossas instalações. Foi uma honra imensa poder entrevistá-lo em exclusivo. O Professor, o Governador, deixou os cargos à porta e foi num ambiente familiar que nos falou, salientando que se sentia também honrado em estar naquilo que apelidou de “o nosso jornal”. Hoje, como todos os, verdadeiramente, grandes, continua humilde e afável.

O Algarve vive os desafios duma região que cresceu acima da média nacional

O Governador do Banco de Portugal, natural de Vila Real de Santo António, visitou...

Agricultura regenerativa ganha terreno no Algarve

No Algarve, a maior parte dos agricultores ainda praticam uma agricultura convencional. Retiram a...

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.