As razões para uma abstenção tão alta numa eleição presidencial são muitas, do cansaço eleitoral à despolitização que o vencedor imprimiu à campanha. Algumas são circunstanciais, outras mais estruturais. Todas juntas são um problema. Até agora, já tínhamos tido situações parecidas na reeleição de Jorge Sampaio e de Cavaco Silva, quando respetivamente 50% e 53% dos eleitores resolveram ficar em casa. Mas isso nunca tinha acontecido na abertura de um ciclo presidencial, que tendencialmente será de dez anos. Marcelo parte, assim, com a clara legitimidade da vitória clara na primeira volta, mas, em simultâneo, com a fraqueza da baixa participação.
Se a alta abstenção não nos surpreende, é muito provável que muita gente seja supreendida pelo trabalho que o novo Presidente vai ter e pelo poderes que vai ser chamado a exercer. Até agora todos os Presidentes tiveram que resolver situações de bloqueio governamental e/ou parlamentar. Dissoluções, demissões, crises e mais crises. Achar que Marcelo Rebelo de Sousa não vai ter que enfrentar situações dessas é um absurdo. Vai ter que as enfrentar e provavelmente vai ter que ajudar a resolvê-las. Em cinco anos isso é mais que certo. Em dez anos nem se fala.
Na ressaca das eleições de outubro, demasiada gente assumiu que o nossos sistema passou a ser parlamentarista. É verdade que foi a primeira vez que o Parlamento encontrou uma solução de governo contrária à leitura tradicional das eleições e à vontade do Presidente. Mas isso não quis nem quer dizer que o sistema tenha ficado estruturalmente desequilibrado. Os pesos e contrapesos do nosso sistema político são os mesmos de sempre e isso será evidente quando existir uma crise.
O erro de análise de que o Presidente não interessa é, curiosamente, comum a partes da esquerda e da direita. A esquerda porque festeja o poder executivo e parlamentar e, assim, entende que o Presidente é sobretudo decorativo; a direita porque achou que só devia votar num Presidente que tivesse como programa político a dissolução, como se isso fosse possível ou lógico. Estas duas visões extremadas e erradas contibuiram para um desiteresse geral e até para a ideia absurda de que o Presidente pudesse pasar a ser eleito por voto indireto, via Parlamento.
Há muitos países onde isso acontece, como a Grécia, a Alemanha ou a Itália, por exemplo. Mas aí, sim, os Presidentes são sobretudo decorativos ou redutos institucionais, com pouco ou nenhum poder. Só em crises gravíssimas, como a que, por exemplo, levou à ‘destituição’ de Sílvio Berlusconi em Itália é que são chamados a intervir. No nosso sistema político isso não faz sentido. É o voto direto que dá a legitimidade e justifica os poderes extremos que o Presidente tem.
Marcelo vai ter muito mais trabalho do que esta campanha deu a entender. A situação económica é débil, o Orçamento frágil, a economia internacional está em sobressalto, a União Europeia enfrenta desafios dramáticos, temos um desequilibrio demográfico gravíssimo, um Estado Social em crise e, para ajudar à festa, os dois maiories partidos sem pontos de contacto. O Presidente vai ter muito mais trabalho e, por arrasto, muito poder para exercer. É por isso que devia ter uma base de participação eleitoral muito superior.
Ricardo Costa (Rede Expresso)