Estava ali, na sala, o meu pai tinha-o trazido e deixado ao abandono em cima da mesa. Olhei para ele com a indiferença da criança que eu era, que ele era também, se bem que um pouco mais velho, embora eu o pudesse então saber. Não servia para brincar, era um bocado de papel com um emaranhado de palavras numa altura em que eu ainda aprendia a usá-las. Sem grande mestria, diga-se de passagem…
Lembro-me de ver o meu pai regressar à sala, pegar nele, sentar-se e como que partir logo em seguida para um lugar onde eu não podia estar, onde eles falavam um com o outro, ou assim parecia, meio alheados ambos do espaço e do tempo, remetidos a outros espaços, outros tempos. O das notícias, mas eu não podia saber, absorvido que estava no pequeno mundo da minha infância…
A verdade é que voltei a olhar para ele quando o meu pai o voltou a largar no tampo da mesa. A custo, bastante a custo, lá soletrei, sílaba a sílaba, como tinha aprendido na escola, as palavras mais visíveis naquele papel: J-o-r-n-a-l d-o A-l-g-a-r-v-e.
Paulo Dentinho
*Jornalista da RTP