Tinha marcado um encontro de emergência com um militante do Partido para às 7 da manhã junto à margem esquerda do Douro. O objectivo era entregar-lhe documentação para me assegurar da sua defesa e tão importante como tal saber se tinha notado movimentações militares fora do habitual na cidade do Porto. Nada de novo quanto a essa informação, tudo estaria a decorrer como habitual. Ficou entretanto marcado novo encontro de recurso no caso de haver alterações com claro significado militar. Regressei a casa.
Cumpria nesse dia a existência de seis anos e meio de trabalho clandestino, como membro do PCP, com funções de responsabilidade em todo o Centro Norte do País, mais a redação do Militante, órgão destinado a dar conta sobre a evolução e suas causas da militância e crescimento do Partido. Repartia tão exausta e delicadas funções com mais dois companheiros também quadros clandestinos. A vastidão tanto geográfica como diversa socialmente a que tínhamos de responder, obrigava a longas e difíceis viagens em alguns casos mesmo de vários dias, obrigava-nos a um apurado sentido de defesa, num balanço que realizávamos entre uma quinzena ou mesmo um mês. Na nomenclatura interna formávamos e trabalhávamos como artífices do Comité Regional das Beiras. No meu caso, como responsável por tal organismo, participava igualmente para funções de prestação de contas e articulação com outros sectores, na então chamada Organização Regional do Norte.
O madrugador encontro das sete da manhã, tinha como reflexo o acumular de notícias, rumores, impressões, sobre a eventual queda do regime. Os acontecimentos militares que tinham ocorrido em Março, sem consequências imediatas, a não ser a deportação do Capitão Vasco Lourenço para os Açores, o Congresso Democrático de Aveiro do qual resultou uma enorme onda de repressão, confirmavam os sinais de que algo em breve poderia ocorrer.
Voltei para casa esperando notícias que viriam pouco depois, ao ser anunciado com êxito, o golpe militar, de pronto envolvido pela população, que finalmente punha fim a um regime ditatorial de mais de 40 anos. De pronto, tanto eu como os meus companheiros nos envolvemos nas primeiras manifestações de apoio ao 25 de Abril. É difícil descrever sensação de liberdade que me invadia o corpo e a alma por finalmente poder utilizar livremente o meu verdadeiro nome, frequentar cafés ou restaurantes, fazer compras sem a preocupação de estar ou não a ser vigiado, retomar o contacto livre com a família.
Hoje no ano em que se comemoram 50 anos sobre tão importante acontecimento que mudou tanto, vidas e o País, no limiar dos meus 80 anos, olho para trás com um sentido de balanço, do qual concluo apesar de adversidades, incompreensões, frustrações e desencantos, que valeu a pena suportar tanto ausências como sacrifícios, que me conduziram a abdicar de projectos e me afastar por longos anos de uma vida comum de cidadão. Ficam os ganhos e a experiência de vida, fica sobretudo concluir que está saldada a minha dívida com a sociedade, que vivo hoje num País liberto, democrático, num quadro em que os ajustes com o passado têm de estar presentes, derrotando politicamente quem circunstancialmente que reverter o curso da História.
Gratificante é saber através da enorme sondagem do Expresso que mais de 65% dos portugueses consideram o 25 de Abril como a data mais importante da nossa História e para 56% a considerar que lhe trouxe coisas boas.
Separados em funções de outras áreas e projectos organizativos do PCP, o Comité Regional das Beiras foi na altura extinto. Desde essa data ficou a promessa, que temos em geral vindo a cumprir, de nos reunirmos, uma vez por ano, na Mealhada em torno de um leitão, ritual que será interrompido quando um dos presentes morrer. Tem sido sempre um grande momento de vida, oxalá possa continuar.