Hospitais: uma central de compras, gestores a mais e um buraco de €36 milhões

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Corria o mês de julho de 2013 e Portugal estava ainda sob intervenção da troika. No SUCH – Serviço de Utilização Comum dos Hospitais, a situação financeira era dramática: desde 2011 que os agrupamentos complementares de empresas (ACE) na dependência do SUCH tinham deixado de pagar os empréstimos bancários concedidos em 2007 pela CGD, BCP e BES. Mas em 2013, após diligências junto do Governo, são os próprios hospitais que convidam a banca a pressionar o Estado.

O mais recente relatório de auditoria do Tribunal de Contas sobre o SUCH recorda um fax do BCP, de outubro de 2014, que assume que em julho de 2013 “a CGD recebeu um contacto do SUCH […] que dava nota que o Gabinete do Secretário de Estado da Saúde tinha verba para regularizar o Somos Compras e que os centros hospitalares agrupados neste ACE já tinham sido informados pelo Ministério desta disponibilidade acordada com o Ministério das Finanças”. “No entanto, para procederem ao pagamento [os centros hospitalares] precisavam ou estavam à espera de serem ‘demandados’ pelos bancos ou pelo menos de receberem uma ‘intimidação’ forte dos bancos”, lê-se na auditoria do Tribunal de Contas, que cita o referido fax do BCP de 2 de outubro de 2014.

Em causa estava uma dívida vencida dos agrupamentos do SUCH superior a 17 milhões de euros, relativa ao financiamento de 40 milhões que tinha sido dado em 2007 pelo sindicato bancário formado pela Caixa, BCP e Banco Espírito Santo. Esse empréstimo repartiu-se em três parcelas: 18 milhões para o agrupamento Somos Compras (que centralizava as aquisições de produtos de vários hospitais públicos), 17 milhões para o Somos Contas (que centralizava a contabilidade) e 5 milhões para o Somos Pessoas (para gestão de recursos humanos).

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Sem meios para conseguir pagar as prestações em falta aos bancos, o SUCH e três centros hospitalares estatais (Lisboa Norte, Lisboa Central e Lisboa Ocidental) concordaram que a solução passaria por pôr estes hospitais a pagar a dívida em causa, assumindo, em contrapartida, uma posição de controlo do SUCH. Mas para o plano seguir em frente era necessário que os bancos assumissem uma posição de força.

Após serem convidados pelos próprios hospitais a cobrar o que lhes era devido, os bancos lançam em agosto de 2013 um ultimato: ou o agrupamento Somos Compras regularizava em 15 dias a sua dívida ou o sindicato bancário recorria à via judicial para a cobrança coerciva dos créditos, reservando-se o direito de acionar “todos os intervenientes direta ou indiretamente relacionados, incluindo o próprio Estado português”.

Conforme relata o Tribunal de Contas, o prazo de 15 dias esgotou-se, mas os bancos não recorreram aos tribunais. Mas a ameaça foi suficiente para que a 19 de setembro de 2013 o secretário de Estado da Saúde homologasse a minuta de acordo que permitiria avançar com a reestruturação financeira do SUCH e dos seus agrupamentos de empresas, participados pelos três centros hospitalares de Lisboa. A começar pelo Somos Compras, um ACE em que o SUCH detinha uma participação de 91%. Embora maioritário neste agrupamento, não foi o SUCH que ficou com a responsabilidade da dívida, mas sim os hospitais lisboetas (que detinham 9% do capital). Cada um dos três centros hospitalares da capital injetaria mais de 6,4 milhões de euros, conseguindo-se assim liquidar os 19,3 milhões (incluindo juros) que a Somos Compras devia à CGD, ao BCP e ao BES. O pagamento foi feito a 31 de dezembro de 2013.

Como foi gerada esta dívida vencida aos bancos? O relatório do Tribunal de Contas reconhece que o SUCH tem uma elevada exposição às dívidas de clientes (os hospitais públicos). E tendo os hospitais estatais sido sujeitos a “graves restrições orçamentais”, não conseguiram pagar atempadamente as suas responsabilidades perante o SUCH. Mas terá sido apenas essa a razão do colapso do SUCH?

A administradora do SUCH que respondeu ao Tribunal de Contas em sede de contraditório explicou que a não assunção da dívida ao sindicato bancário pelo próprio SUCH se deveu à sua delicada situação financeira. “O SUCH não tinha capacidade para o fazer sob pena de entrar em colapso financeiro”, argumentou.

Já o presidente do SUCH, Paulo Correia de Sousa, respondia em novembro de 2015, perante o Tribunal de Contas, que a aposta nos agrupamentos complementares para gerar economias de escala para os hospitais públicos foi uma decisão governamental, pelo que “não é do SUCH a estratégia nem é dele a responsabilidade pelo seu insucesso”. O gestor salientava ainda a obtenção, pelo SUCH, de resultados operacionais positivos, lamentando que o Tribunal de Contas não os tenha valorizado na sua auditoria.

Dívida oculta

Embora os hospitais de Lisboa tivessem registado corretamente nas suas contas estes pagamentos, o mesmo não sucedeu com o SUCH, que não reconheceu no seu balanço a responsabilidade por esta dívida, situação que motivou reparos do Tribunal de Contas numa auditoria cujo relatório veio a público em julho de 2015.

Num novo relatório publicado esta terça-feira, o Tribunal de Contas mostra que as relações entre o SUCH e o Governo estão longe de ser perfeitas. Segundo um e-mail de 27 de janeiro de 2015 de uma administradora do SUCH, esta entidade mantinha no início de 2015 “negociações com a tutela, na sequência da integração dos três ACE no perímetro consolidado do Orçamento do Estado, por forma a ser encontrada uma solução que habilite os Somos, e no caso particular o Somos Compras, a responder autonomamente às suas obrigações/dívidas, libertando o SUCH da atual missão de o substituir temporariamente no cumprimento das mesas”.

Mas o Governo negou o que a administradora do SUCH reportou. Segundo o Tribunal de Contas, a Secretaria de Estado da Saúde respondeu que “não tem qualquer conhecimento da existência de quaisquer negociações” neste domínio.

Em março de 2015 o Governo publicava um despacho que viria regularizar contabilisticamente a situação: os centros hospitalares de Lisboa recebiam do Orçamento do Estado um aumento de capital estatutário de 19,3 milhões (equivalente ao montante necessário para pagar as dívidas da Somos Compras aos bancos) e ao mesmo tempo devolviam outros 19,3 milhões ao Orçamento do Serviço Nacional de Saúde, para o normal financiamento dos cuidados de saúde.

Tribunal condena atuação do revisor de contas

Em abril de 2015, os centros hospitalares de Lisboa votaram contra as contas de 2014 do SUCH, entidade que veria também o Tribunal de Contas recusar a homologação dos seus relatórios de 2013 e 2014, recomendando ao SUCH que as refizesse, para assumir contabilisticamente as dívidas acumuladas.

Mas não é só a administração do SUCH que é condenada pelo Tribunal de Contas. Também o revisor oficial de contas (ROC) do SUCH é alvo de críticas.

“A ocultação da dívida nas contas não foi objeto da emissão de qualquer reserva por parte do revisor oficial de contas, que, conhecendo a situação financeira efetiva e real do SUCH, ainda assim emitiu a opinião de que as demonstrações financeiras apresentavam, de forma verdadeira e apropriada, a posição financeira do SUCH”, nota o Tribunal de Contas.

O Tribunal considera “manifestamente insuficiente” a posição tomada pelo ROC nos pareceres sobre as contas de 2013 e 2014. Diz ainda o Tribunal de Contas: ” não se compreende que o ROC, no âmbito dos pareceres ao relatório e contas de 2013 e 2014, se tenha limitado a assumir como seu o entendimento do anterior ROC e do conselho de administração do SUCH”. E continua: “Com efeito, os ROC, no exercício das suas funções, expressam uma opinião independente sobre os factos patrimoniais, devendo ainda manter uma atitude de ceticismo profissional”, observa o Tribunal.

Em sede de contraditório, o ROC, Luís Moura Esteves, defendeu a sua atuação. “É nosso entendimento que os relatórios por nós emitidos se encontram adequadamente suportados nas asserções contidas nas demonstrações financeiras e outros elementos disponibilizados pelo conselho de administração do SUCH”, refere a resposta do revisor de contas ao Tribunal, datada de 2 de novembro de 2015.

Gestores a mais, buraco de 36 milhões

No seu relatório de auditoria, o Tribunal de Contas também deixa reparos à organização do SUCH, cujos órgãos sociais representaram em 2014 um encargo de 520 mil euros (abaixo dos 761 mil euros de 2010). “Ainda assim é excessivo o número de elementos do conselho de administração (nove membros, dos quais cinco executivos)”, observa a instituição, notando ainda que o Decreto-lei 209/2015 veio prever, em setembro último, que a administração tenha um máximo de cinco elementos, sendo apenas três executivos.

A dimensão da administração do SUCH está, contudo, longe de ser a maior das preocupações do Tribunal de Contas, que nas conclusões do seu relatório enfatiza principalmente os 36,3 milhões de euros de capitais próprios negativos que o SUCH agora regista, evidenciando uma situação de falência técnica. Além disso, frisa o Tribunal, “as contas corrigidas revelaram um passivo que estava oculto de cerca de 45,5 milhões de euros”.

Deste total, 42,3 milhões de euros são dívida bancária dos ACE, mas o presidente do SUCH, Paulo Correia de Sousa, recusa que tal seja responsabilidade da entidade que lidera. “A explicação para aquela dívida radicará antes, e desde logo, nos elevados investimentos efetuados pelos referidos agrupamentos no desenvolvimento das soluções de serviços partilhados encomendadas pelo Governo de então [em 2007 o Executivo era liderado por José Sócrates]”, notou o presidente do SUCH perante o Tribunal de Contas. Esses investimentos seriam pagos com as economias de escala geradas pelas compras conjuntas dos hospitais… mas a verdade é que a adesão dos hospitais públicos à central de compras veio a ficar aquém do previsto.

A estes problemas o Tribunal acrescenta a ambiguidade do estatuto do SUCH. Constituído em 1966, e “renovado” em 2007 com os novos agrupamentos de empresas, o SUCH “mantém a natureza de associação de direito privado, o que o exime de respeitar regras de gestão pública”, nota o Tribunal. Mas ao mesmo tempo o SUCH “mantém a natureza jurídica de pessoa coletiva de utilidade pública administrativa, o que lhe confere benefícios”, nomeadamente isenções fiscais e vantagens competitivas face a outros prestadores de serviços com que concorre no mercado da saúde.

E os contribuintes podem acabar lesados, aponta o Tribunal de Contas. “Cada aquisição de bens e serviços feita diretamente pelos associados ao SUCH a preços superiores aos de mercado constitui, pelo excesso, uma forma de financiamento do SUCH através dos recursos do SNS e uma penalização dos contribuintes pela imposição de “preços administrativos” mais caros”, lê-se nas conclusões da auditoria.

Miguel Prado (Rede Expresso)

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