Mortes sacrificiais

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Colaboradora. Designer.

Confesso-me dividido.

De um lado, o infindável planalto minimalista a que chegámos, as muitas interrogações sem resposta com o futuro por tema, a crise – e sim, sobretudo os milhões de crises pessoais – que se instalou, os primeiros assomos de fome e miséria absoluta que devastam milhares de existências no meu País, um início de crise que se vai multiplicar e sempre agravar, e agravar, e agravar. Tudo a impulsionar-nos para fazermos alguma coisa, rompermos com este ciclo de uma realidade que só piora.

Do outro lado, a inevitável conclusão de que afrouxar medidas vai, deixemo-nos de subterfúgios, matar gente. Sim, por muitas máscaras, lavagens, distâncias, cautelas com que atolemos o nosso futuro próximo fora de casa, aumentarão riscos, casos e mortes.

Qual é então o critério da nossa escolha ética e, em matéria executiva, da opção do Governo? Valerá a pena este regresso imediato à normalidade? Não será ele precoce? Quantos pratos de sopa valerá uma vida humana? Quantas famílias satisfeitas? Quantas fábricas abertas, bicas ao balcão, restaurantes cheios, lojas cheias, praias apinhadas, piqueniques de felicidade, escolas com aulas, esplanadas repletas, teatros cheios (ainda que com um terço da lotação)? Qual o preço a pagar, em sacrifícios íntimos, privados, chorados, pela nossa felicidade coletiva, ainda que essa felicidade se chame apenas, tecnocraticamente, “retoma”?

É esta a minha divisão e é à saída dela que não cheguei. Continuo ignorando quantos pastéis de belém, ou mesmo carros produzidos pela Autoeuropa, vale uma vida, mesmo que de um velhote de 80 ou 90 anos. Qual o valor da antecipação da sua morte em alguns miseráveis anos?

António Costa mostra-se disposto a recuar um passo caso os passos à frente deem para o torto. Por outras palavras: se morrer gente. Mais cruamente, o primeiro-ministro está disposto a arriscar o sacrifício de umas quantas vidas em nome da retoma da economia e da felicidade coletiva. Depois… entra a numerologia: a tal questão de saber a partir de quantos mortos para baixo se constrói um sucesso.

Afinal, provavelmente, seremos cobaias da retoma económica. Se não resultar – quer dizer, se morrer mais gente do que morre agora – daremos um passo atrás e regressaremos ao (des)conforto do lar. E, em milhares de casos, à miséria.

Faz-me lembrar a atitude das nações quando se trata de guerra: se o ideal vencer, podem morrer uns quantos. A morte é o natural sacrifício em nome de um conceito que se elegeu como mais nobre. Na frente de batalha, ou na campanha da retoma, há um número de baixas acima do qual se pode falar em derrota.

O problema não é “se” existirão esses sacrifícios de vidas (existirão inevitavelmente), é “quantos” serão eles até o magnânimo Estado decidir que é demais e, porventura, dar o tal passo atrás.

Até porque, reforço o que já disse, não é só a estrita felicidade terrena que está em causa do outro lado da balança: a fome, multiplicada por milhares de vidas, também tem um peso, assim como os sacrifícios brutais, o desemprego, os sem-abrigo.

Mais do que Costa (que já decidiu), estou eticamente dividido, como um general sensível à morte dos seus homens na hora de decidir se avança. Indeciso entre a vida e a vida.

João Prudêncio

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