1 – O JORNAL do ALGARVE tem orientado o seu trabalho, desde a sua fundação, com um objetivo muito marcado pelo desenvolvimento sustentado da região. Passados estes 66 anos de luta, como vê e sente o Algarve? Que avaliação faz do Algarve que temos? Quais são os seus principais problemas?
Mendes Bota – Criou-se um círculo vicioso. Metade das receitas municipais são provenientes de dois impostos ligados ao stock imobiliário: o IMI e o IMT. Quanto mais metros quadrados de betão uma autarquia aprovar maior será o seu orçamento. Com raras exceções, quem se queixa do atraso na revisão dos instrumentos de planeamento, Planos Diretores Municipais, POOC’s, o que tem essencialmente em vista é alargar áreas de construção, aumentar densidades, reduzir áreas protegidas, dar dentadas no Domínio Público Marítimo. Tem sido uma fuga contínua para a frente, em muitos casos ao sabor de interesses sem rosto. A reabilitação urbana tem merecido pouco suporte, a pulverização de casas pré-fabricados sem licença multiplica-se a cada dia que passa, perdeu-se a identidade arquitetónica do Algarve. Há 20, 30 ou 40 anos atrás ainda se poderia tolerar uma certa iliteracia urbanística por parte de responsáveis políticos. Havia prioridades e necessidades básicas das populações por satisfazer, que concentravam o cerne da sua atenção. Água, estradas, eletricidade, saneamento básico, resíduos sólidos, estruturas locais de saúde, culturais ou desportivas. Hoje, sabendo-se o que se sabe, cometidos os excessos urbanísticos que se conhecem, é imperdoável continuar a cometer os mesmos erros. A um certo momento, deveria ter havido a coragem de parar com a ocupação massiva da faixa litoral em pelo menos 500 metros do mar para o interior. No mínimo! Mas não, ninguém parou, e pelos vistos não tenciona parar, ocupando sucessivamente áreas costeiras de beleza natural irrepetível, num processo de betonização contínua da face marítima do Algarve. Ficou-se a saber recentemente que estão mais 11.000 camas na calha em áreas muito sensíveis. É o império dos chamados “direitos adquiridos”, com a indiferença, a cumplicidade ou a corrupção de muita gente com responsabilidades. É paradoxal que, face aos avanços do mar, se continuem a licenciar construções na sua proximidade.
2 – A liderança que temos tido e os representantes políticos, quer autárquicos, quer deputados, têm defendido e lutado o suficiente por esta região?
MB – A classe política regional, no Algarve como no resto do País, vive numa constelação de bolhas de influência. Cada partido tem os seus programas próprios de animação, em conformidade com o seu papel no poder ou na oposição, mas com uma interação direta com o eleitorado muito circunscrita. A comunicação digital substituiu em muito o contacto direto entre eleitos e eleitores. E o volume de informação que chega é uma parafernália, excessivo e difuso. Não cria a empatia de outrora. Cada autarquia representa hoje em dia um circuito fechado de interesses, são agências de emprego e de promoção de negócios de obras públicas e projetos privados. O seu poder é enorme, nada se faz sem passar pelo crivo autárquico. Torna-se difícil a emergência de líderes políticos carismáticos, como os houve no Algarve em tempos idos, forjados em muitos anos de luta política no terreno, ombro a ombro com multidões de apoiantes, quando se lutava mais por ideais do que por interesses materiais. A maioria da população vive hoje desiludida e alheada desse microcosmo político. Provavelmente, uma sondagem de rua revelaria índices de desconhecimento muito elevados sobre quem são e o que fazem os políticos regionais do Algarve, muitos deles nem cá vivem.
3 – Para que haja desenvolvimento, tem que haver uma estratégia. Que estratégia preconiza para a região?
MB – Muito do que o Algarve é, e será, tem a ver com o Turismo. Mas ficar demasiado dependente de um dos sectores mais sensíveis a qualquer crise internacional, financeira ou sanitária, é um risco. De um dia para o outro, podemos ficar com o aeroporto fechado, os hotéis vazios, os restaurantes às moscas e toda a economia subsidiária comprometida. Ninguém parece preocupado em refletir sobre a capacidade de carga da região. Há 40 anos, todos os Congressos do Algarve que aqui se faziam concluíam pela necessidade de diversificar a economia. O discurso continua o mesmo, pouco se avançou.
4 – Fala-se muito em descentralização e/ou regionalização. Que tipo de liderança precisa o Algarve?
MB – A descentralização avançou bastante do poder central para as autarquias, mas ainda há muita margem de progressão pela frente. A regionalização perdeu o seu momentum com o referendo de 1998, dificilmente terá outro. Está em marcha uma via indireta para lá chegar, tornando as CCDR’s sucedâneos dos governos regionais. Padece de um pecado original. Não é o povo quem escolhe o seu líder nem o seu programa de ação. E uma eleição indireta, às costas dos autarcas, mas não é a mesma coisa. Falta-lhe legitimidade democrática.
5 – Há “massa crítica” capaz de revolucionar o Algarve, transformando-o, efetivamente, numa região diversificada, multicultural, onde é bom trabalhar e viver, com uma boa saúde e oferta cultural para além do sol e praia?
MB – Apesar dos males que lhe possamos apontar, o Algarve ainda é uma região onde vale a pena viver, diz quem conhece mundo. Gente capaz para o dinamizar existe. Um dos grandes conseguimentos do pós-25 de Abril aqui foi o ensino superior, um baluarte imprescindível da dinâmica regional. Mas não tenhamos ilusões: o Algarve antigo, tal como o conhecemos, está a desaparecer. O algarvio puro, ou o algarvio-tipo é uma raça em vias de extinção. Para o bem e para o mal.
*Ex-presidente de câmara e ex-deputado pelo PSD