“O investimento na cultura não é apenas monetário, é também em ‘cabeças pensantes'”

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Após cinco anos à frente da Direção Regional de Cultura do Algarve (DRCAlg), extinguida e integrada na CCDR, Adriana Nogueira aceitou o desafio do JA para fazer o balanço do mandato que terminou no final de 2023. A também professora universitária falou-nos sobre o atual panorama cultural na região, das dificuldades que enfrentou durante a pandemia, dos projetos que a deixam orgulhosa, sobre a falta de apoios e sobre a passagem de competências das direções regionais para as CCDR. Diz que na região falta a "crença de que é possível a mudança"

JORNAL do ALGARVE (JA) – Na qualidade de diretora regional da Cultura nos últimos cinco anos, como descreve a evolução do desenvolvimento cultural no Algarve? O que mudou?
Adriana Nogueira (AN)
– Quando se refere «Cultura», no Algarve, a maioria das pessoas assume que se está a falar da atividade dos agentes culturais que apoiávamos, através dos programas que abríamos anualmente, como o PAACA – Programa de Apoio à Ação Cultural do Algarve (dirigido aos agentes culturais não profissionais), o DiVaM – programa de Dinamização e Valorização do Monumentos (para atividades a serem desenvolvidas nos monumentos tutelados pela Direção Regional de Cultura, sob um tema anual), ou o Programa de Apoio à Edição de Obras Temáticas sobre o Algarve, cujos objetivos o nome deixa claro. Para todos estes programas, a DRCAlg foi gerindo – e dependendo dos anos, cerca de 200 mil euros (houve anos em que se conseguiu algum reforço dos 180 mil iniciais). No entanto, a DRCAlg, quer no número dos seus recursos humanos afetos, quer nos valores que movimentou, tinha o seu trabalho mais intenso centrado nos serviços afetos à salvaguarda e conservação dos bens culturais, aliados à sua divulgação. Além disso, os três monumentos que nos estavam afetos (logo no meu primeiro ano, cinco dos oito que a DRCAlg tinha a seu cargo foram transferidos para os respetivos municípios) exigiam ações muito específicas, tanto de conservação, como de visitação ou de divulgação.

Posto isto, posso dizer que, no âmbito da nossa Divisão de Promoção e Dinamização Cultural (DPDC), criada em 2019 e que, até meados de 2023, teve a Anabela Afonso (que muitos conheciam já, enquanto comissária do programa 365 Algarve) como dirigente, posso dizer que a pandemia abalou muitas estruturas e muito o meio artístico. Da nossa parte, tivemos como política apoiar quem se candidatava, considerando determinados aspetos valorativos, que os agentes tinham em conta – e penso que continuarão a ter -, como propostas de atividades fora da época alta, em zonas mais despovoadas, considerando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e sempre em parceria. Acredito que estes valores – que muitos já tinham como seus – permanecerão. Pelo que sei, os agentes culturais estão a organizar-se, para poderem fazer frente a novos desafios e jus ao provérbio de que «a união faz a força».
Procurámos aproximar os agentes culturais à instituição pública. Apesar de só no fim termos formalizado o Gabinete de Apoio aos Agentes Culturais, sempre estivemos disponíveis para os receber e esclarecer. Desta relação, resultou um reforço da formação. Os agentes culturais fizeram-nos chegar as suas preocupações e necessidades e, em parceria, promovemos ações de capacitação, como, por exemplo, «Deficiência e gestão cultural» ou «Introdução à audiodescrição».

JA – Como encara a passagem de competências das direções regionais para as CCDR? O encerramento da Direção Regional de Cultura vai prejudicar a Cultura?
AN
– Enquanto diretora regional, tive a oportunidade de, em diversos momentos, juntamente com as outras diretoras regionais, manifestar a minha opinião junto da tutela. Não sei quais as consequências dessa passagem, mas acredito nos dirigentes da DRCAlg que passaram para a CCDR e, também ali, se mantêm a dirigir a área da Cultura. Isto é, o Frederico Tátá Regala, à frente da Salvaguarda, com a Elsa Cavaco, na área da Ação Cultural. Acredito na sua capacidade de trabalho e na relação que vão continuar a estabelecer com as entidades públicas e privadas e com os agentes culturais.

JA – Quais as ações/projetos dinamizados pela Direção Regional de Cultura que destaca nos últimos anos?
AN
– Nestes cinco anos, no âmbito da Salvaguarda, sem dúvida, a obra do Centro Expositivo da Fortaleza de Sagres, que conseguimos, finalmente, concretizar. Temos agora, na Fortaleza, um espaço com uma exposição de longa duração, sobre aquele território, os seus mitos e a sua história, que é também a história de Portugal.

(…) Apoiados pelo PO Regional – CRESC Algarve 2020, pelo Turismo de Portugal – ou pelos dois, como foi o caso de Sagres, conseguimos concretizar várias outras – importantes – ações, entre as quais destaco o restauro dos mosaicos de Milreu (em Estoi, Faro); o projeto de acessibilidades na Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe (na Raposeira, Vila do Bispo); e a nova sinalética de Milreu, com a reconstrução, nas novas placas, onde o visitante pode ver como seria o que, aos seus olhos, agora é «apenas» uma ruína.

No âmbito da Ação Cultural, destaco o programa DiVaM; os encontros mensais “Café com Letras”, numa parceria com a Biblioteca da Universidade do Algarve, a FNAC de Faro e o apoio da RUA – Rádio Universidade do Algarve; as Rotas Literárias – a do Algarve e a de Saramago no Algarve; e o Projeto Magalhães – Magallanes_ICC. Através dele, pudemos potenciar uma relação entre a história mais profunda e científica e as chamadas ICC – Indústrias Culturais e Criativas, pondo em contacto historiadores e agentes culturais. Destaco ainda, no âmbito da formação dos trabalhadores, as diversas ações que foram realizadas e apoiadas, todos os anos, que abrangeram trabalhadores de todas as categorias, incluindo os dirigentes.

JA – Durante o seu mandato, ficou algum objetivo por alcançar?
AN
– O meu mandato foi marcado por dois anos de pandemia, o que, naturalmente, dificultou o arranque de alguns projetos. Um deles, o HArPA, que pretendia fazer um trabalho junto das escolas, sensibilizando os professores, para que pudessem trabalhar com os alunos vários temas das Histórias, da Arte e do Património do Algarve. Não se pode amar e querer proteger o que não se conhece, não é verdade? Graça Lobo, que foi a primeira comissária do Plano Nacional de Cinema e que tinha uma experiência profunda de trabalho com docentes e alunos, com o Juventude/Cinema/Escola, abraçou o meu desafio e veio trabalhar connosco, precisamente, para dinamizar esse projeto e reforçar a equipa dos serviços educativos e de mediação cultural. Ainda fez algumas ações, mas, infelizmente, deixou-nos cedo demais.

Também gostaria que algumas obras do Plano de Recuperação e Resiliência e do PO Regional – CRESC Algarve 2020 tivessem arrancado ainda durante este mandato, mas esclareço que estive dois anos em regime de substituição, de dezembro de 2018 a novembro de 2020 (…) portanto, do mandato de cinco anos, cumpri três, mas estou muito contente com o que realizámos, no que respeita aos projetos. (…) O não ter conseguido reforçar a equipa com os trabalhadores necessários, nas diversas áreas, também dificultou a nossa ação.

Adriana Freire Nogueira no interior do Centro Expositivo da Fortaleza de Sagres

JA – As entradas nos monumentos algarvios aumentaram. A que se deve esse incremento?
AN
– Penso que tenha sido em resultado de uma melhor comunicação. Reforçámos a nossa equipa, integrando uma pessoa da área, o que fez com que a qualidade aumentasse. Apostámos nas diversas redes sociais, nas notas de imprensa claras e concisas, numa newsletter e no melhoramento do site. Além disso, a comunicação das obras que iam sendo feitas também terá atraído as pessoas aos monumentos, bem como a qualidade das atividades aí desenvolvidas (mais uma vez, o DiVaM).

JA – A tutela da Fortaleza de Sagres e das Ruínas de Milreu saíram da região. Como explica esta decisão, vista por muitos como “pouco coerente”? Sabe se existe a possibilidade de um retrocesso desta decisão?
AN
– A explicação dada pela tutela prendeu-se com representatividade nacional dos monumentos. E não, não acredito num retrocesso. Pelo menos, para breve.

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JA – Face à perda de apoio por parte de algumas companhias, nomeadamente da ACTA, é da opinião que os critérios para a atribuição das verbas do Programa de Apoio Sustentado Direção-Geral das Artes devem ser revistos?
AN
– Todos os tipos de critérios de apoio devem ser sempre, regularmente, revistos, pois, para além de a realidade não ser a mesma em todo o país, está sempre em mudança.

JA – A Cultura tem acompanhado o avanço da tecnologia?
AN
– Se está a perguntar se usamos mais meios tecnológicos nas nossas áreas, direi que, em potencial, sim. Já existem instrumentos de deteção de patologias de monumentos menos intrusivos, conhecem-se novas técnicas de conservação e restauro, usa-se tecnologia da medicina para «ler» objetos, pode-se fazer prospeções arqueológicas com georadar. E essas técnicas têm sido usadas na região. Se me pergunta se há formas de arte que se baseiam na tecnologia, como a Arte Digital, direi que estamos em vias de ter, no Algarve, um museu dedicado a essa arte, o Museu Zero, em Santa Catarina da Fonte do Bispo. Se me pergunta se a DRCAlg tinha acesso a um sistema de gestão documental eficiente ou se já cumprimos com a desmaterialização preconizada para a Administração Pública, terei de dizer que não.

JA – Considera que as novas gerações estão mais próximas ou mais distantes da Cultura?
AN
– Essa é daquelas perguntas que, só por si, daria para horas de conversa. As novas gerações têm acesso e potencialmente poderão ficar mais próximas do que as nossas gerações alguma vez estiveram. Têm acesso, online, a livros de várias áreas; a arte do mundo inteiro; ao património imaterial, que vai sendo mapeado e apresentado em diversos sites; à música, ao cinema… enfim, estão mergulhadas em cultura. Se conseguimos que conheçam, visitem e amem o património, isso é um trabalho dos pais, das escolas e dos equipamentos culturais. A maior parte dos espaços já tem serviços educativos e/ou de mediação cultural, e fazem um trabalho muito próximo das escolas. Muitos municípios têm atividades e projetos de valorização e divulgação do seu património, junto dos mais jovens. Esse é o caminho.

JA – A criação de novos públicos será o maior desafio para a Cultura no futuro, a par da escassez de apoios?
AN
– Criar públicos, fidelizar públicos, nada disso se faz sem continuidade, sem estabilidade. Esse é um grande desafio. E conseguir mais dinheiro para haver projetos estruturantes para Cultura.

JA – Na sua visão, não se investe mais na Cultura porque não se pode ou porque não se quer?
AN
– Parece-me que é uma questão de opção estratégica. Localmente, há municípios que dedicam uma fatia significativa do seu orçamento para a Cultura. Para quem pensar em termos economicistas, quanto mais se investir na cultura, mais retorno se tem. Lê-se na informação do INA, de 20 de outubro de 2022, que «Tendo 2018 como ano de referência e com resultados para o triénio 2018-2020, a nova edição da Conta Satélite da Cultura (CSC) revela que as atividades culturais representaram cerca de 2,4% do Valor Acrescentado Bruto (VAB), em 2018 e 2019 e 2,3% em 2020» (ano que apanhou a pandemia). Como sabemos, o investimento na cultura não é apenas monetário, é também em «cabeças pensantes», pessoas ativas e conscientes – cultura e educação andam a par. É nesse futuro que temos de investir.

JA – O que faz falta na Cultura da região?
AN
– Creio que não será apenas na região. Crença de que é possível a mudança. Massa crítica empenhada. Juventude empenhada. Educação para a cultura. Tempo para os professores e para as famílias. As máquinas não vieram aliviar o ser humano. Antes pelo contrário: estão a obrigá-lo a acompanhar a sua velocidade. E isso é impossível. Como diz o mote de Évora, capital Europeia da Cultura 2027, falta-nos «vagar».

JA – Acredita ter deixado algum legado na Cultura algarvia?
AN
– Internamente, com as pessoas com quem trabalhei e muito aprendi (tive o privilégio de privar com os “decanos” Rui Parreira, Natércia Magalhães e Cristina Farias), procurei levar uma forma de trabalho partilhada, de decisões o mais coletivas possíveis, ouvindo os outros. Valorizo muito a confiança e o trabalho de equipa. Externamente, terão as pessoas de o dizer. Espero ter mantido a boa relação que as minhas antecessoras tinham com os municípios e as instituições; mantive as parcerias (com a Rede de Museus do Algarve, por exemplo) e alarguei-as, encontrando novos parceiros e novas formas de relacionamento institucional; procurei acelerar os processos de classificação de bens, por forma a reconhecer a valorização, nos seus diferentes graus, que a região demandava; procurei diálogo e proximidade, a pessoas e a instituições. Se a população se lembrar de que existiu uma Direção Regional e do seu papel, terei aí a minha parte.

JA – Agora afastada da DRCAlg, como são os seus dias?
AN
– Pode parecer paradoxal: são muito atarefados, com muita tranquilidade. Estou de licença, para recuperar desta comissão de serviço, que me afastou por cinco anos, e atualizar-me para um regresso às aulas, a par de retomar a atividade de investigação. (…) Estou muito entusiasmada!.

Nota Biográfica

Adriana Freire Nogueira iniciou funções como diretora regional de Cultura em dezembro de 2018, após a finalização do mandato de Alexandra Gonçalves, que ocupava o cargo desde dezembro de 2013. Natural do Bombarral (Leiria), é licenciada em Línguas e Literaturas Clássicas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutorada no ramo de Literatura, na especialidade de Literatura e Cultura Clássicas, pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve. Para além de professora auxiliar nesta faculdade, desde 2006 e até 2018, foi também diretora da biblioteca da UAlg, sendo subdiretora do Doutoramento em Literatura (2018). Dirigiu igualmente o departamento de Artes e Humanidades daquela instituição (2011-2013), foi membro eleito do Conselho Científico da mesma faculdade (2011-2018) e diretora do Mestrado em Produção, Edição e Comunicação de Conteúdos da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve (2011-2014), entre outras funções.

Turbulência nos processos de extinção das direções regionais

As CCDR passaram a ter atribuições na área da Saúde, Educação, Agricultura, Cultura, Conservação da Natureza e Ordenamento do Território, daí a extinção da Direção Regional de Cultura do Algarve, entre outras. As integrações destas entidades nas CCDR decorrerão até 31 de março de 2024. As Unidades de Cultura nas CCDR terão como tarefa captar mecenato, participar na inventariação do património cultural imaterial e na manutenção de arquivos documentais e da base de dados do património arquitetónico e arqueológico, bem como fiscalizar vários tipos de trabalhos — tudo como parte da maior reforma operada pelo Ministério da Cultura sob alçada de Pedro Adão e Silva.
Recorde-se que em abril de 2023, investigadores e arqueólogos dos em serviços tutelados pelo Ministério da Cultura alertaram para as “consequências desastrosas” da integração dos serviços e competências do Património Cultural nas CCDR. Em junho de 2023, também o presidente da CCDR do Algarve, José Apolinário, manifestou-se contra a reorganização administrativa das competências da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), que classificou de “incoerente”. Entretanto a CCDR deu a conhecer, que Frederico Tatá Regala passou a ser diretor regional da nova Unidade da Cultura, cargo que desempenhava internamente desde dezembro.

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