Retalhos do meu sentir: O valor da herança das memórias algarvias

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Herdei uma bolsa de retalhos de uma das minhas avós, na qual a minha mãe guardou, religiosamente, duas ou três bonecas da minha infância; uns óculos da minha bisavó Etelvina; um Jesus Cristo em estanho da minha avó Rita; e um fio de prata com um medalhão que ostentou, durante a vida da minha avó Maria Neto, uma fotografia minha e outra dela.


Do meu avô Luís, herdei um cachimbo e um selo para lacre. Do meu avô Manuel, canivetes, latinhas que encaixam como matrioskas, lancheiras, fogareiros… tudo feito em lata, reaproveitada, moldada criativamente pelas suas mãos de artesão, pingada com solda a que adicionava pós ocres de uns vidrinhos que guardava no cimo do fogão a lenha.


Conservo com amor e muito carinho estas relíquias, que o passar do tempo selecionou, impregnando de significado e valor. A juntar a este espólio, uma cassete na qual gravei, impulsivamente e sem nenhumas condições técnicas, o meu avô materno a contar a história da “Branca Flor” e a dos “Três Corcovadinhos”.

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Mais tarde, esta ideia divertida que efetuei na simplicidade dos meus quinze anos, seria material de trabalho na licenciatura que tirei em Estudos Portugueses, mais concretamente na disciplina de Literatura Oral onde, a querida professora Doutora Isabel Cardigos, me fez acreditar que possuía um tesouro, constando hoje o nome do meu avô, Manuel Gomes Nené, e as histórias por si contadas do Catálogo dos Contos Tradicionais Portugueses, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira, pelas Edições Afrontamento.


Mas, o que de mais precioso guardo, e que nunca encontrei, nestes 47 anos de vida, alguém que também conhecesse (sem ser da minha família direta), ou tivesse visto alguém fazer, é aquilo que aprendi também com ele, e a que chamei de “herança de papel”: um misto entre origami e magia, no qual, perante os olhos ávidos dos netos, dobrava em cinco uma simples folha de papel retangular, e, com um único corte vertical, a transformava em duas pingas de sangue, dois pregos, dois martelos, dois corações e ao meio, perfeita, a cruz de Cristo.


Há sempre muito a ser feito, mas é de louvar o trabalho que o grupo de trabalho dedicado ao Património Cultural Imaterial, da Rede de Museus do Algarve, tem vindo a desenvolver relativo à recolha, preservação e divulgação das memórias culturais algarvias.


Da Dieta Mediterrânica, à confeção do Litão, do Bolo Tacho, das Estrelas de Figo, às Artes de Pesca do Guadiana ou à Palangre, passando pelas Festas da Mãe Soberana, São João da Degola, Tochas Floridas, e terminando nas artes das Cadeiras de Tesoura, da Olaria, do Abegão, entre tantas outras ainda por registar e catalogar.


Conhecer, difundir e divulgar, salvaguardar as memórias, instrumentos, objetos, artefactos dos nossos antepassados e passa-las às gerações futuras é preservar o património cultural imaterial representativo de comunidades, grupos e indivíduos, elevando o sentimento de pertença, de identificação com a sua história comum e dando respeito pela diversidade cultural e pela criatividade humana, tal como se pode ler na Convenção Para Salvaguarda do Património Imaterial, disponível na ligação ao Património Cultural Imaterial do Algarve, disponível na página da Direção Regional da Cultura do Algarve www.cultalg.pt

Sara Gomes Brito

*Mestre em Literatura Comparada/ Pós Graduada em Multiculturas e Gestão de Relações Interculturais

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