Por debaixo dos panos

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Colaboradora. Designer.

Quando era criança brincava aos polícias e bandidos. Nunca me importei de ser bandido, ao contrário da maioria dos putos com quem brincava. Pelo contrário, adorava ser rufia. À falta de fardas, o que distinguia os maus dos bons era o pano que os primeiros usavam na zona da boca. Não bastasse a ignomínia de ser mau, os bandidos tinham que ter, além disso, dificuldade em respirar.

Umas boas dezenas de anos depois voltei a ser bandido e a ter que lutar contra as dificuldades respiratórias. Ao contrário do que antes acontecia, a maioria dos meus concidadãos pugna agora por uma tarja à volta da fronha. Não que queiram ser vilões, mas lutam contra uma doença que chega através de um bicho que ninguém vê. E também contra a multa. Neste novo mundo, os polícias castigam quem não tiver cara de bandido. Ou, talvez melhor, quem apenas tiver cara.

Não ter cara. Não ter cara tem o seu desconforto, mas, além de nos livrar de multas, traz outras vantagens. Por exemplo, quando na melhor nódoa cai o pano: finalmente os feios podem olhar o mundo sem ser olhados e portanto depreciados. Ser feio passou a ser algo tão incógnito como ser maluco e não abrir a boca para ninguém reparar. Tudo vai bem com um pano no rosto. A máscara é a vingança dos infelizes sapos deste mundo contra séculos de desdém, infâmia e terror. A tarja igualiza-nos, democratiza a vida do supermercado, do comboio, da rua. A tarja é mais anti-discriminatória do que o Luther King a repetir “I Have a Dream”.

Para os complexados, sejam bonitos ou feios, o pano à volta da boca vale agora mais do que um divã psicanalítico semanal e 100 mg de sertralina diária. Nunca a expressão “não dar a cara” fez tanto sentido e, sobretudo, tão bem à alma! Finalmente, todos os que são feios deveras, ou têm apenas complexos de o ser, ou ostentam uma verruga na base da narina esquerda, ou simplesmente têm falta de um dente, podem sentir-se iguais aos giraços com quem se cruzam diariamente e, até agora, só os miravam pela menina do olho, de tão superiores que se sentiam. Hoje, não têm por onde se sentir. Só se pela fantasia cromática do pano pendurado nas orelhas.

Por outro lado, os bonitos têm que começar a lutar pela vida. Já não basta mostrar as fuças, o pano não deixa, têm que abrir a boca (mesmo que por baixo do pano) e falar, falar, para se distinguirem dos demais. Falar revela a qualidade da massa encefálica, a vossa nova possibilidade de terem algum relevo social. Acabou-se a vantagem esotérica, há que subir a pulso. Façam-se à vida. E aos livros, lindinhos!

E na escola, quando houver escola, como será este assomo de véu islâmico democratizado a que os miúdos ocidentais estão agora obrigados? Como se sentirá o nosso adolescente engatatão que não consegue ter um vislumbre do rosto da coisa potencialmente amada? Adivinho nele um medo terrível, de fazer tremer as pernas, antes de a máscara cair e se revelar o rosto da miúda (do miúdo) por cujo singelo corpo-abaixo-do-pescoço ele se pré-apaixonou. “Vamos lá a ver se corresponde! Tcharan!”

Imagino até que a erotização do corpo adolescente suba uns bons centímetros, devido à ocultação dos rostos. O que para os nossos antepassados era o irresistível erotismo de um valente par de pernas invisíveis, apenas adivinhadas, escondidas por uma saia até às canelas, passa a ser, para o adolescente da geração covid, um rosto, lindo ou não, adivinhado por baixo de uma tira de poliéster descartável.

E haverá lá coisa mais sexy do que um rosto à mostra! Por desengraçado que seja.

João Prudêncio

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