“Quando Começo a Cantar” completa 80 anos a 25 de Abril

Ano de António Aleixo deverá ser 2023 nas cidades de Loulé e Vila Real de Santo António

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Para quem não sabe – e para avivar a memória dos que já se esqueceram – “Quando Começo a Cantar” é o título do primeiro livro de António Aleixo – um livrinho de 63 páginas, composto de 113 quadras, 4 quintilhas, 5 sextilhas e 2 composições em décimas subordinadas a mote.

Foi no dia 25 de Abril de 1943 (Domingo de Páscoa naquele ano) que essa pequena obra de poesia de intervenção veio a público, na então vila de Loulé – e pela mão do próprio poeta – que, diga-se em abono da verdade, não teve mãos a medir, a atender compradores.

A tiragem fora de 1.100 exemplares e o preço de 7$50 (sete escudos e cinquenta centavos). Felizmente para o autor, não houve um só comprador que não pagasse o seu livro, no mínimo, com uma moeda de 10$00 (dez escudos) – havendo muitos que o fizeram com notas de vinte; outros com notas de cinquenta; e um, cujo nome não chegou a ser revelado, pagou com uma nota de cem e se retirou sem esperar pelo troco. O que demonstrava não só um genuíno espírito de solidariedade para com o poeta, cujas dificuldade económicas eram bem conhecidas, como o grande respeito de que, por aquela altura, António Aleixo já era merecedor de parte dos seus inúmeros admiradores louletanos.

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“Quando Começo a Cantar” abria com um pequeno prefácio do Dr. Joaquim Magalhães, intitulado “Explicação Indispensável”, no qual o futuro “secretário” do poeta introduziu uma quadra, sem dúvida das mais acutilantes e assertivas que o livro contém:

“Quem nada tem nada come;
e ao pé de quem em comer,
se alguém disser que tem fome,
comete um crime, sem querer.”

Publicado no tempo da Segunda Guerra Mundial – mas integrando quadras com vários anos de existência, algumas até já publicadas em jornais – “Quando Começo a Cantar” revelava um poeta – embora de província – atento e perspicaz; tão cáustico quanto expressivo, quer no que toca à sua posição face ao conflito que assolava a Europa e o Mundo, quer face ao regime político vigente em Portugal na altura, ou seja, o Estado Novo de Salazar – que fazia aos portugueses (a maioria, para ser mais preciso) pagar um pesado preço pela guerra, que perseguia em quase toda a Europa, Norte de África e Ásia.

De tudo isso António Aleixo nos falava nesse seu primeiro livro. A fome, a miséria, o açambarcamento dos géneros alimentares, o mercado negro, o enriquecimento dos “chico-espertos” sem vergonha, a exploração de quem trabalha, as injustiças sociais, a repressão policial…

Tudo temas que, por essa altura, nenhum poeta, por mais neo-realista que fosse, ousou abordar nos seus livros. António Aleixo fê-lo, em quadras tão escorreitas de forma, quanto oportunas de conteúdo. Quadras de que, ainda hoje, nos admiramos de como não foram proibidas – e continuaram pela vida fora, sem que os olheiros do Governo lhes tenham levantado qualquer obstáculo. Vejamos algumas dessas quadras:

“Forçam-me, mesmo velhote,
de vez em quando, a beijar
a mão que brande o chicote
que tanto me faz penar.”

“Não acho maior tortura,
nem nada mais deprimente,
que ter de chamar fartura,
à fome que a gente sente…”

“Quantas sedas aí vão,
quantos brancos colarinhos,
são pedacinhos de pão,
roubados aos pobrezinhos!”

É certo que o Dr. Joaquim Magalhães, como organizador do livro, tivera o cuidado precautório de misturar as quadras de fundo lírico com as de maior carga contestatária, conseguindo assim obnubilar a atenção dos homens do “lápis azul”. Isto, por um lado; por outro, para imprimir o livro escolheu a Tipografia União de Faro, propriedade da Igreja; para suportar os custos de impressão, pediu auxílio à Junta da Província, organismo do Estado, presidido pelo Dr. José do Nascimento, prócere regional da União Nacional e professor do Liceu João de Deus (Faro), que concedeu um subsídio de mil escudos.

Com tais manhas tácticas, o livro circulou sem que nenhuma voz se tenha levantado contra. Aliás, o mesmo sucedendo com as obras subsequentes do autor.

Em Faro, a apresentação, e início de venda, de “Quando Começo a Cantar” só teve lugar no domingo seguinte, 2 de Maio, aquando da inauguração duma exposição de pintura e desenho de artistas algarvios, no Círculo Cultural do Algarve – o editor do livro – onde estava representado outro louletano – e grande amigo de António Aleixo – o estudante de arquitectura e caricaturista Manuel Maria Laginha. Os livreiros da cidade, num gesto de franca solidariedade, prescindiram da sua normal comissão, a favor do poeta. Não sabemos é se a generosidade dos compradores foi igual à dos louletanos; mas que o êxito de vendas foi idêntico, disso não temos dúvidas.
Um mês depois, António Aleixo não cabia em si de contente: “Até me parece que vivo noutro planeta” – declarou na entrevista que deu a um jornal de Coimbra – “já consegui vestir os filhos e pagar umas dívidas de aflição que me pesavam. Felizmente tenho tido amigos que me têm valido” – acrescentou, radiante de gratidão.

Dois meses bastaram para se esgotar a primeira edição deste livrinho do popular poeta algarvio. Mas só cinco anos depois saiu uma segunda edição, pela Atlântida Editora, de Coimbra, em 1948.

Tendo sido pensado, organizado e editado com fins essencialmente humanitários, a iniciativa do Dr. Magalhães atingia por completo o seu primordial objectivo. Mais: António Aleixo exultava ao ver o seu talento reconhecido pelas “altas competências” locais (embora o seu amargo realismo o levasse logo a desabafar:

“Se o meu livro se consome,
pode cobrir-me de glória;
mas depois a minha história
dirá que morri de fome.”)

Os jornais (semanários ou diários) – do Algarve ao Porto – com maior ou menor ênfase, todos elogiaram a qualidade da obra e o mérito do seu autor. Julião Quintinha, no “Diário do Alentejo”, de Beja, asseverava que António Aleixo “era certamente muito mais um poeta – filósofo que poeta popular” e que, no livro agora editado, encontrava “algumas das mais perfeitas quadras que tenho lido nos últimos tempos”.
Estaria, sem dúvida, a referir-se a algumas destas:

“Quem me vê dirá: não presta,
nem mesmo quando lhe fale,
porque ninguém traz na testa,
o selo de quanto vale.”

“Sei que pareço um ladrão….
mas há muitos que eu conheço,
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.”

“Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria;
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.”

Agora, oitenta anos volvidos sobre aquele 25 de Abril (e Domingo de Páscoa) de 1943, é da mais elementar justiça, e faz todo o sentido, recordar o dia e trazer ao conhecimento dos leitores mais novos as circunstâncias em que o poeta António Aleixo apresentou ao público o seu primeiro livro (outros viriam, ao longo dos seis anos que lhe restavam de vida). E lembrar a razão do título por ele escolhido:

“Quando começo a cantar,
eu bem quisera agradar,
mas nem sempre sou capaz;
só quando o coração canta
a minha pobre garganta
faz o que nem sempre faz.”

E também sugerir que o ano de 2023 bem podia transformar-se, em Vila Real de Santo António ou em Loulé – ou em ambas as cidades – no ano de António Aleixo, suscitando assim um conjunto de iniciativas que contribuiriam certamente para aprofundar o conhecimento da vida e da obra – sobretudo da obra – do Poeta singular que foi – e é – o prodigioso autor de «Quando começo a Cantar».

Ezequiel Ferreira

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