REMATE CERTEIRO: O porto de Vila Real de Santo António e o pesadelo da escrita

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No começo da semana reabriu a economia, por isso trago à tona da verdade uma imagem do poderia do então Porto de Vila Real de Santo António fundamental para a nossa economia. Depois, os homens que só têm pesadelos, e julgam que sonham, tiveram o pesadelo de arrasar com o porto, que ficou definitivamente abandonado, lançando dor, pobreza, morte ao desenvolvimento.


E nós em Vila Real de Santo António continuamos com a nossa revolta, perante mais uns milhões que pateticamente se atiraram para o lixo, em troca de falsas promessas.


Por isso, enganam-se os que pensam que não se vive de memórias, que são ao fim ao cabo, as fontes maiores da nossa identidade e de desta forma, de preservarmos o que fomos.

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Inegável que Vila Real de Santo António tinha um dos mais importantes portos comerciais do País, beneficiando também de todo o potencial conserveiro da «Vila», mas também da importância da exploração da Mina de S. Domingos, cujos proprietários possuídos de uma darga de nome Moya, permitiam o constante desassoreamento da barra do Guadiana.


Não temos necessidade algum em nos alongarmos em estatísticas, sobre todo o potencial económico do Porto de Vila Real de Santo António, no que se refere ao número de barcos que quase diariamente aqui aportavam e as toneladas de carga da mais diversificada: conservas, mármores, palha, alfarroba, madeira e outros cereais, que daqui rumavam a alguns dos mais importantes portos da Europa, nomeadamente Itália, Alemanha, Inglaterra, França e para muitos outros.


Mas permitam-me que encalhe, com a edição do Jornal do Algarve, de 30 de Janeiro de 1997, quando da conclusão do Mestrado do Dr. Hugo Cavaco, que trás à ribalta, como tese de mestrado, tendo como título: «A dinâmica Portuária e Aduaneira do Levante Algarvio na 2.ª metade do século XVIII (1750-1790)», onde já roçava contornos de progresso e desenvolvimento, aquilo que hoje é mera paisagem ou sinal de referência como memória.


Todavia, num salto maior da história, soltam-se as lembranças, as amarguras, os dramas, as angústias, as traições, as frustrantes e por vezes, que foram com o tempo arrasando, o Porto Comercial de Vila Real de Santo António, como se uma bomba por ali tivesse passado.


E muitas vezes, tendo em conta a impossibilidade dos espanhóis colaborarem com a dragagem da barra, que de quando em vez calcinava pelo deslizamento de areias provocado pelas correntes, e para impedir que esse tampão fechasse a barra, era a empresa Mason and Barry, que colocava a sua draga e os seus batelões na eliminação desses focos de areia.

De toda a Europa, chegavam a partiam grandes navios de mercadorias, a par das centenas de traineiras que ancoravam no estuário do Guadiana, assim como barcos pertencentes às diferentes armações de atum, permitindo o fumegar das fábricas, a valorização das empresas e da economia, e a constante empregabilidade que tal movimento gerava.


Todavia a juntar ao emagrecimento da exportação dos produtos que era a imagem de marca da economia do Algarve e grandemente do País, surge a nossa impossibilidade de nos tornarmos competitivos, por exemplo com Marrocos, com as politicas de desenvolvimento do país, viraram costas a Vila Real de Santo António, e foram apetrechando com novas tecnologias, outros portos, e criando, o que consideramos um pesadelo, o Porto de Faro. Aliás, se fizermos uma consulta pela imprensa o longo dos cinquenta anos, vamos encontrar tomadas de posição e decisões, que pedra a pedra arrancaram o Porto de Vila Real de Santo António afundando-o em frente de Ayamonte…


Este foi dos grandes pesadelos que aconteceram em Vila Real de Santo António, onde não faltaram estudos, estratégias, promessas, de sucessivos governos e governantes, desgovernos e desgovernantes, ainda que soubéssemos, que emergiam agora outros paradigmas de negócios no âmbito comercial, que inviabilizavam cada vez mais o porto e pasmavam a sua resistência.


Começávamos a perder o cheiro das fábricas, da safol, do Zé Aranha a vender pardais pintados de amarelo como se fossem canários, aos camones ingleses que desembarcavam dos seus navios.


E tão submissos, que não tivemos força para impedir que acabassem com o cais da Rainha, a casinha do porto, o cais do Paródio, da lota, do Tenório, do Zé Rita, do Folque, só ficou como aurora constante o cais do Depósito…


Vila Real de Santo António, a sua economia, conserveiros, armadores, pescadores, operários, sindicalistas sofriam na alma o abrandamento e consequente falência de um potencial, que agora era apenas memória.


E nessa tremenda continuidade, terrivelmente avassaladora, por culpa também dos responsáveis pelo País, que tinha abandonado e desencorajado, a que outras opções económicas acontecessem e não só o turismo. Aliás, a pandemia, veio demonstrar, que o Algarve não tem plano B, os próprios autarcas que foram sucessivamente administrando o concelho, entre promessas e mentiras, entre enganos e desenganos, foram ficando com o menino nos braços, e nem na Assembleia da República, por vezes um colégio de confrades, pela impotência do loby do Algarve, também não encontrou fosse o que fosse, que fizesse emergir a economia da “Vila”, e diminuíssem drasticamente os braços caídos.


Rumava tudo a Faro ou rumava tudo a parte incerta: A casinha do consumo, o balneário público, o parque de S. José, onde habitava a sede do Lusitano (que não sabemos se não será levado pela enxurrada), o hospital Marquês de Pombal, depois de levarem também, a Casa de Saúde, Dr. Albano Lencastre, o apeadeiro, a praia dos empelotes, o cais da Rainha, o cais do Tenório, o cais do Paródio, o cais do Zé Rita, o cais do Folque, e muitos outras coisas, que ainda de quando em vez emergem da nossa velha sebenta.


Levaram tudo: os guindastes, o velho Belo, que foi ao longo de muitos anos um dos seus grandes timoneiros. E só não levaram a Alfândega, porque era demasiado pesada.


Mataram os barcos da carreira de Ayamonte (existe um que ainda navega para a Ilha do Farol), os da carreira de Mértola.
Já não fazemos barcos, nem de cortiça e o guadiana afunda-se no seu lamaçal de memórias.


Tudo fechou, como se um estranho ar tivesse acontecido, como se a voz de um pesadelo tivesse ensurdecido o desenvolvimento da vila, e desse vida às suas gentes.

Navio a carregar cortiça


Fecharam as fábricas Zé Rita, Folques, Tenório, Paródio, Ramirez, Peninsular, Aliança, Esperança, porque quando nascemos, já a Fábrica do Grego era uma moldura de escombros.


Fechou a Autoavenida, o Norberto Bento, A fábrica das chaves, a moagem, a fabrica do gelo, a serração do Manuel da Silva Domingues, a Soliva, (o Vazio), as drogarias Faísca, Pena e Silva.


Fechou o Joaquim Gomes, a Rainha dos Vinhos, O Zé Calceteiro, a Marisqueira, o Vinte e Oito, o António Vicente, o Vargas, o António Vaz. Até o Boletim Informativo do Senhor Nogueira, que nos dava o movimento diário da lota, acabou…


Deixámos, e só a memória existe, de competir com o Lisboa Ginásio, quando dos grandes saraus de ginástica do Clube Náutico do Guadiana, que nada temia sob a mestria desta enorme figura que foi Ilídio Setúbal, potenciando ginastas como Chinita, João Romão, Lúcio, Aníbal, José Ferreira, Vítor Fonseca, José Guerreiro, Quinito e tantos outros.


Verdade que também sabemos que o mundo global em que vivemos, chamado para nos esconder a severidade dos nossos tempos, não pode ser a nossa constante fonte de ansiedade.


Fomos levados pelos consulados das promessas, para junto de vários tubos de ensaio, onde tudo seria o futuro e em vez de olharmos se o tubo teria estrias onde pudéssemos encalhar, não, preferimos ficar neste futuro tão incerto, duvidoso e imprevisível e quando demos por nós estávamos bem entalados nas paredes do tubo e tudo foi agrestemente à bolina.


Rebentámos com os estaleiros, e hoje, nem de plástico, nem de madeira e estopa, nem de fibra de vidro. Encostámos ao cais, em barcos de já não flutuam.


Esquecemos Aleixo, Cabanas, Vicente Campinas, Gravanita, Lopes Madeira, Samúdio, Alice Silva, Joaquim Correia (Joaquim do Cumbrera), entre muitos outros, que assumiam terrível confronto com o Estado Novo, mas como diria, Salgueiro Maia, nunca imaginámos, que Vila Rela de Santo António tivesse chegado ao estado a que chegou.


Este é um memorial que vem de muito longe, e que apesar dos enganos não tem arrefecido, o animo e a coragem dos autarcas, desde o PCP à governação actual, com maior ou menor competência, pois se não existir vontade dos governantes, Vila Real de Santo António, apesar de todo o seu potencial, da gigantesca beleza natural, deste iluminismo fantástico que a consagra, continuará no apeadeiro à espera do comboio, como se o apeadeiro ainda existisse.


Agora que a economia reabriu em Portugal, isto é, mais de dois meses após as assobiadelas do coronavírus, todas as lembranças nos conduzem ao que Vila Real de Santo António, o seu Porto e a sua força conserveira, representaram para a economia do Algarve e do País, e para melhor ver este pesadelo, subi imaginariamente ao ponto mais alto do «guindaste da muralha» que já não existe, e pareceu-me ver lá de cima um manto imenso de barcos cobrindo o guadiana, tais como: Arrifana, Batinha, Amazona, Nice, Nicete, Praia do Vau, Deolinda Rita, Refrega, Maria Rosa, Conceiçanita, Raulito, Flor do Guadiana, Perola do Guadiana, Janita, Praia do Vau, Vulcão, Liberta, Agadão, Brisa, Biosa, Norte, Tufão, Nordeste, Flor do Sul, Navegantes, Farilhão, Mirita,Triunfante, Leste, Lestia, Audaz.


E mais ao fundo ainda e com a nitidez que não engana, vejo dezenas de homens velhos de braços caídos, por falta de coragem, para arranjar forças para contarem aos seus netos, como era a terra onde nasceram e que tanto mal lhe fizeram… É que tal como em 1997, quando foi criado o rendimento mínimo garantido, já se começa outra vez a passar fome…

Neto Gomes

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