Sequeiro volta a ganhar força mas o negócio da alfarroba está a tornar-se num ‘faroeste’

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Portugal está entre os três maiores produtores de alfarroba do mundo. Apenas Marrocos e Espanha ultrapassam os números produzidos só no Algarve. Em fevereiro de 2022, 15 quilos de alfarroba valiam 50 euros - um máximo histórico alcançado numa indústria que é parte do ADN económico, social e cultural da região. A alfarrobeira está a ganhar terreno face às culturas exóticas que consomem mais água. Fomos à procura das razões para a hipervalorização do fruto e ouvimos as preocupações de quem faz disto vida. Querem lutar pela dignidade do setor e pela qualidade de um produto único

Apanha da alfarroba (foto Quinta do Marco, Tavira)

“É preciso dizer que a alfarroba não valorizou por causa das farinhas para bolos nem por causa do covid”, começa Isaurindo Chorondo, responsável por uma das maiores empresas de transformação industrial do país e a única detentora de uma unidade laboratorial (localizada no Areal Gordo, em Faro) que trabalha exclusivamente a parte nobre da alfarroba – a semente. A Chorondo & Filhos, sediada na localidade de Tenoca (Boliqueime), está no ramo há mais de 80 anos e já vai na 4.ª geração, representada por Ismael Chorondo (e pelos irmãos), gerente comercial da empresa que fatura, anualmente, “alguns milhões de euros”. O negócio divide-se na comercialização de três produtos: sementes, triturados (finos e grados) e farinhas de alfarroba.
Ao JA, pai e filho explicam que “o preço da alfarroba ao produtor está indexado ao preço da semente. Por ser a parte nobre do fruto, com aplicações múltiplas, são as empresas produtoras de goma de alfarroba espalhadas pelo mundo e para quem exportam que ditam o preço”. A valorização do fruto aconteceu “porque a semente passou a valer mais”. Mas ainda há outro motivo na visão de Isaurindo Chorondo que justifica o ‘boom da alfarroba’: “Os preços subiram porque também estiveram demasiado baixos durante muito tempo. Desde 2017 até agora o negócio tem vindo a rentabilizar”, mas sempre com base na lei da oferta e da procura. Quando a alfarroba atingiu o seu máximo registado (50 euros), a semente tinha um valor, numa arroba, de aproximadamente 47 euros, com a polpa a valer apenas três euros, exemplificam os empresários. Neste momento, o valor de mercado da alfarroba ronda os 30 euros.

Apesar de considerarem este um “mercado livre”, os Chorondo deixam claro que “não existem tabelamentos nem combinações entre os empresários do setor” e justificam: “é importante as pessoas saberem que, da nossa parte, há transparência. Até porque, caso isso acontecesse, é algo que não compensa. O volume de compras aumentaria, mas depois teríamos de pagar acima do preço que a semente vale, o que não é benéfico”, clarificam.
Dentro do setor, falámos também com Salvador Madeira, um dos elementos da 4.ª geração de gestores da empresa Madeira & Madeira (Moncarapacho, Olhão), negócio familiar especializado na trituração de alfarroba e importação e exportação de frutos secos. Com mais de 80 anos a negociar com alfarrobas, tanto Salvador como o pai não se arriscam a traçar uma evolução (no que toca aos preços) para o setor nos próximos anos, alegando que “este é um mercado especulativo e aquele que disser que sabe, na verdade não sabe nada”, afirmam. Para estes empresários, “cada campanha tem uma história” e a deste ano só acabará “em julho de 2023”.

Expetativa dos produtores é que seja “sempre a subir”
A expetativa dos produtores e agricultores com quem o JA falou, na zona de Benafim (Loulé) e São Brás de Alportel, os quais optaram pelo anonimato para se “protegerem dos gatunos”, é que o mercado e os preços continuem “lá em cima”, dizem esperançosos. Muitos acreditam ser possível “voltar à marca dos 50 euros até ao final do ano”. Outros apostam em picos “de 60 a 70 euros” nas próximas temporadas. Ainda que a esperança seja “muita” para aqueles que se levantam “todos os dias antes do nascer do sol” para apanhar alfarrobas e para os se dedicam de corpo e alma ao negócio do ‘ouro negro’, este é um “negócio de previsões e de poucas certezas”, atentam os industriais. Ao contrário de outros produtores, José Baganha, produtor na freguesia de Quelfes (Olhão), diz não acreditar que os preços possam ultrapassar o máximo registado em fevereiro de 2022 (50 euros) e justifica: “Se o fruto tiver um preço muito mais alto, os industriais vão à procura de gomas mais baratas, como já aconteceu em tempos”.

A semente é ‘rainha’
Neste setor, há que saber separar o ‘trigo do joio’ que neste caso se traduz em separar a semente da polpa da alfarroba. A semente, extraída após trituração, é usada para fabricar espessantes, como o referenciado emulsionante E410 (para ter uma ideia, para fazer um quilo de espessante são precisas duas arrobas de alfarroba), utilizado na indústria farmacêutica, cosméticos, gelados, xaropes (melaço de alfarroba) e uma série de outros produtos alimentares. Já a polpa, depois de triturada, é um produto destinado à indústria de rações para animais. No que toca às farinhas, Ismael Chorondo faz a distinção: “A farinha feita através da polpa é aquela que vemos nos supermercados e é muito barata. A farinha produzida a partir da semente da alfarroba é outra coisa. O custo de uma para a outra pode ser mil vezes superior. Quando a arroba chegou aos 50 euros, essa farinha aproximou-se dos 100 euros/quilo”, assinala. Toda a semente que é produzida no Algarve vai para exportação.

A polpa já triturada (foto JPR)

Falta de regulamentação preocupa industriais e agricultores
Para Ismael e Isaurindo Chorondo, “um dos grandes problemas do setor é a falta de regulamentação que fomenta a existência de mercados paralelos”. A obrigatoriedade de inscrição de atividade nas Finanças para a venda de alfarroba remonta a 2013, altura “em que as coisas apertaram um pouco e ainda bem que assim foi”, diz Ismael ao JA. Contudo, há muito que essa inscrição deixou de ser suficiente. A valorização do fruto “alicia a fuga às faturas e para aqueles que querem evitar burocracias e não querem sobrecarregar o IRS, há sempre outros sítios onde podem ir vender. No Algarve há mais de 100 pessoas a comprar alfarroba. Não são só os trituradores que compram”, afirma.
O que está em causa é a absorção, por parte dos intermediários, dos valores do produto comprado sem fatura. Por isso, Isaurindo Chorondo pede “mais fiscalização num setor de pessoas de bem que querem respeitar a lei. Essa é e será a nossa luta – desmistificar a ideia de que este é o negócio de pessoas que não respeitam a lei”, garante. “Tem de haver fiscalização a todos os indivíduos que compram. A questão das balanças e do acondicionamento do produto também é muito importante”, acrescenta por sua vez o gestor comercial.
Quando os preços da arroba estavam baixos, “estávamos a falar em 0,50 cêntimos ou de um euro que saia fora. Neste momento, com a alfarroba a 30 euros, há comerciantes e industriais que compram sem fatura com muitos euros de diferença. Isto tem de ser visto porque são milhões de euros que saem fora da malha. É concorrência desleal. Daqui a pouco isto torna-se o faroeste”, assevera Isaurindo Chorondo. Pai e filho sugerem mais medidas como “a definição de horários diurnos para o comércio, a delimitação da época da apanha da alfarroba (respeitando o ciclo do furto), multas, diretrizes sobre o transporte das alfarrobas”, entre outras. Também o produtor José Baganha sugere a criação do ‘cartão de produtor’ com um plafond ajustado aos parcelários de cada agricultor.

Ministra promete mais medidas regulamentares
José Filipe, gestor e técnico de apoio no Agrupamento de Produtores de alfarroba e amêndoa do Algarve (AGRUPA), disse que JA que estão a trabalhar no sentido de desenvolver, em colaboração com a Direção Regional de Agricultura, ASAE, Autoridade Tributária e Aduaneira, GNR e também com a AMAL, o “Plano de Ação – Furtos de citrinos, abacates e alfarrobas no Algarve”. No caso da alfarrobeira, por ser a cultura matriz de toda a região e por não ser fácil controlar os furtos (que aumentaram com a subida de preços), o objetivo é “criar uma legislação própria para o setor idêntica àquela que foi aplicada ao pinhão”, explica o gestor.
Neste âmbito, o AGRUPA trabalhou com a Direção Regional de Agricultura uma proposta legislativa que ficou pronta em maio de 2021, não existindo até ao momento qualquer evolução (apesar das promessas da ministra da Agricultura). A proposta, que o AGRUPA ambiciona que se torne num decreto-lei, tem duas componentes principais: “Estabelecer a época das colheitas para evitar roubos e preservar a qualidade do fruto e a necessidade de existir uma declaração de origem do produto para que existam sempre provas das transações comerciais e rastreabilidade”. Esta declaração facilitaria também “as apreensões e a aplicação de coimas”, refere.
O silêncio por parte do Governo motivou o protesto organizado pelo AGRUPA no dia 29 de junho, em Loulé. De acordo com José Filipe, a manifestação em Loulé serviu “para mostrar a todos, incluindo à ministra, que para nós é extremamente importante que a legislação seja aprovada. Os roubos estão a causar perdas de rendimento aos agricultores e estão a comprometer a cadeia de valor do produto”, deplora.

Há alfarrobas a serem apanhadas ainda verdes
Com medo dos furtos, há registo de alfarrobas que estão a ser apanhadas antes do mês de agosto, pelos agricultores, o que “coloca em causa a qualidade dos produtos”, alerta Isaurindo Chorondo. Para além disso, os próprios “ladrões” também se antecipam à época da apanha por culpa dos valores atrativos, dizem os industriais. Ora, a alfarroba, se apanhada verde, “perde as qualidades dos seus açúcares e a semente não está totalmente formada. O ciclo não é respeitado, o produto não é devidamente acondicionado, nestes casos, e é matéria-prima deitada ao lixo”. É prejuízo para todos, lamenta o empresário de 64 anos. “Preservar a qualidade da alfarroba é a nossa missão e gostávamos que as pessoas interiorizassem isto – se preservarmos a qualidade do produto todos ficam a ganhar”, defende.

Aumento dos preços ‘pode ser uma luz’ para a agricultura de sequeiro
Ismael Chorondo confirma que “Há cada vez mais pomares de alfarrobeiras. São hoje mais organizados, com base num novo tipo de agricultura e os agricultores têm também outro nível de conhecimento e sabem atuar com adubos na hora certa”. A existência de apoios comunitários para o desenvolvimento desta cultura “também ajuda bastante e incentiva as pessoas”, sublinha.
A Chorondo & Chorondo também é fornecedora de sementes para alguns ‘viveiros’ e é aí que notam que “as pessoas estão a querer implementar o negócio”. Agricultores dizem-lhes, na primeira pessoa, que “já ninguém quer saber dos abacates”. Sejam novos ou velhos, a prova disso é o aumento dos arrendamentos de terrenos para o cultivo de alfarrobeiras. Salvador Madeira também é a favor desta tese: “O sequeiro está a voltar. As pessoas estão a voltar a plantar alfarrobeiras. Já não existem alfarrobeiras abandonadas”, constata.
Por outro lado, José Baganha, especialista na produção de alfarroba há 18 anos, tem uma opinião diferente em relação ao regresso do sequeiro. “Se formos fazer um pomar novo no sequeiro com os níveis de pluviometria que temos agora, não é algo que seja rentável. Sem rega, a alfarrobeira é uma árvore que poderá demorar 15 ou 20 anos a entrar em plena produção”, explica. Já no regadio, esse período baixa para oito a 10 anos. “Se o São Pedro nos der 400 ou 500 milímetros de chuva, nós produtores, com mais 300 ou 400, conseguimos ter pomares em plena produção. Com 750 milímetros de água por ano, diz, já se cobrem as necessidades hídricas da alfarrobeira, com uma produção na ordem dos 10 mil quilos/hectare em pomares de regadio com 130 a 150 árvores por hectare.
O JA visitou uma unidade de compra de alfarrobas no concelho de Loulé. Apesar de alegar “ter tudo em dia”, o responsável fechou as portas a quaisquer esclarecimentos acerca da atual temporada.

Processo para certificar produtos já está em curso

José Filipe adiantou ao JA que se está a trabalhar, “há mais de um ano”, em conjunto com a Direção Regional de Agricultura, na certificação da alfarroba algarvia, a qual passará a ter Indicação Geográfica Protegida (IGP) – classificação ou certificação oficial regulamentada pela União Europeia atribuída a produtos gastronómicos ou agrícolas tradicionalmente produzidos numa região. Pelas suas “qualidades e características”, a alfarroba do Algarve poderá ser distinguida, com os seus derivados, a nível internacional, segundo o gestor do AGRUPA, que aproveitou para comunicar que “este desígnio foi também um pedido da ministra da Agricultura”, conclui.

Roubos aumentam de ano para ano

De acordo com dados atualizados da GNR cedidos ao JA, até ao dia 24 de agosto foram furtados 75 mil quilos de alfarrobas (mais 20 mil quilos do que em 2021). No total, já foram feitas 71 apreensões face às 55 do ano anterior. Também se verificou uma subida no número de detidos: 15 em 2022 e nove em 2021. De 01 de janeiro até ao dia 24 de agosto de 2022 foram identificadas 157 pessoas por furtos de alfarroba (mais 25 do que em 2021). Silves, Loulé e Olhão são os concelhos mais afetados, segundo a GNR. No ano de 2021, a GNR registou 218 denúncias por furto de alfarroba, sendo que entre 01 de janeiro e 24 de agosto de 2021 foram registadas 109 denúncias. No presente ano, até dia 24 de agosto, já se registaram 211 denúncias.

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