Ambientalistas voltam a chumbar João d’Arens

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São três hotéis de cinco estrelas, que querem instalar numa zona semiurbana de Portimão, junto à orla marítima. Chamam-lhe João d’Arens e é uma das zonas mais aprazíveis da cidade para um passeio à beira-mar. O projeto anda literalmente aos tombos pelos gabinetes desde 2008, ano em que foi aprovado, mesmo com construções previstas a menos de 500 metros da linha de costa, graças a um expediente jurídico. A primeira avaliação ambiental chumbou no ano passado. Terminou há dias a consulta pública da nova avaliação do projeto, depois de reformulado pelos promotores. A operação de “cosmética” tentou convencer organismos públicos e ambientalistas. Não parece que tenha chegado

A reformulação do projeto que prevê a construção de três hotéis de cinco estrelas no sítio de João d’Arens, em Portimão, contou com uma participação record de 524 entidades ou pessoas individuais, de acordo com o Portal Participa. O processo de avaliação de impacto ambiental (AIA) esteve em consulta pública entre 7 de maio e a passada sexta-feira, 19 de junho, e deverá agora ser objeto de análise com os contributos entretanto verificados.


Particular peso nessa análise deverá ter as posições dos organismos chamados a participar, como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) e o Município de Portimão, além dos grupos ambientalistas e de cidadãos.


Em causa está a construção de três hotéis de cinco estrelas naquele espaço, considerado por muitos como a última área selvagem da cidade junto à orla costeira. O plano das construções, que foi aprovado preliminarmente em 2008 como Plano Municipal de Ordenamento (Plano de Urbanização/Plano de Pormenor), expediente sem o qual nunca seriam aprovados à luz do novo PROT, que proíbe taxativamente construções a menos de 500 metros da linha de costa, o que é o caso. Graças àquele procedimento excecional, as construções foram aprovadas, não sendo abrangidos pelas normas do PROT. Este é um dos mais de 10 projetos atualmente previstos para o litoral algarvio na faixa dos zero a 2000 metros, que totalizam mais de 20 mil novas camas.


O projeto, da autoria de vários promotores entre os quais o conhecido empresário Miguel Pais do Amaral, ex-dono da TVI, acabaria por ser chumbado com uma Declaração de Impacto Ambiental desfavorável, emitida pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDR Algarve) em 3 de maio do ano passado, antecedida de parecer desfavorável da Comissão de Avaliação responsável pela análise técnica do Estudo de Impacte Ambiental (EIA).


Na altura, a Comissão de Avaliação achou que, independentemente das medidas propostas no EIA “para a mitigação, prevenção e compensação dos impactes identificados”, o projeto não reunia condições para poder ser viabilizado, “nomeadamente no que se refere a fatores como a Biodiversidade e a Paisagem”.

Mudar plantas de um lado para o outro


Como causas principais desse primeiro chumbo declararam-se na altura a destruição de quase três hectares de um importante núcleo de uma espécie rara de planta, praticamente só ali existente, mas exclusiva do Barlavento, a Linaria algarviana (vulgarmente conhecida como “piça de mouro”), espécie que se considera fortemente pressionada, que beneficia do estatuto de proteção da Rede Natura 2000.


O chumbo de há mais de um ano alicerçava-se também nos previsíveis impactes irreversíveis na estrutura e qualidade cénica da paisagem, “suscetíveis de comprometer a identidade de uma das zonas que preserva os traços originais da paisagem costeira regional”.


A cércea (altura) dos edifícios em causa e o seu volume, fatores associados ao número de camas – que quantificam a problemática cénica e a pressão humana sobre o local – também foram apontadas pelos avaliadores como contribuintes para o desmerecimento da aprovação.

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O novo plano de urbanização até há oito dias em fase de consulta pública na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve prevê a remoção de boa parte da Linaria algarviana para outra zona do mesmo Sítio, mas isso não satisfaz os ambientalistas.

Luís Brás, dirigente da associação ambientalista Almargem


“Ao relocalizarem a Linaria algarviana dizem que assim não é afetada a área da espécie. Mas há dúvidas porque, apesar de dizerem que não afeta, a certo ponto do plano dizem que há uma parte que vai continuar a ser afetada. Há uma via que continua a passar nessa área”, disse ao JA o ambientalista Luís Brás, dirigente da associação Almargem, recordando que o projeto chega a afastar ligeiramente um edifício, para proteger uma colónia de linárias.

ICNF também vai chumbar


Também participante na consulta pública que terminou na passada sexta-feira, o ICNF reforçou o parecer que já tinha sido emitido anteriormente, o que significa que a mudança de um edifício e da própria colónia da planta não convenceram o organismo.


“Há valores naturais e espécies protegidas, a Linaria algarviana, que foram referenciadas naquele território. Depois desta reformulação, ainda há áreas em que o edificado colide com áreas georreferenciadas da linaria algarviana. Nós mantemos o nosso parecer. É uma flor autóctone do Algarve”, disse ao JA o delegado regional do ICNF, Castelão Rodrigues, justificando a repetição do parecer negativo do instituto.


Ressalva que neste último projeto reformulado os promotores “apresentam uma solução de criar uma reserva específica para a linaria, delimitada, que é do nosso agrado, mas mesmo assim ainda ali há áreas afetadas, na área de execução do projeto”.

Castelao Rodrigues, delegado regional do Algarve do ICNF

Avisa, porém, que caso haja recuos significativos face àquelas intenções, o parecer do ICNF será outro: “Esperamos que eles façam essa correção, para o nosso parecer ser favorável”, admitiu, qualificando o parecer do ICNF de “condicionado”. “Eles sabem o que é. Identificamos no nosso parecer o que está errado e pode ser ultrapassado”, aquiesceu Castelão Rodrigues.
O impacto visual, invocado no primeiro chumbo, está estreitamente ligado ao volume do edificado e ao tamanho de cada edifício, sobretudo em altura. Nesse sentido, neste novo projeto, os promotores substituíram os três edifícios primordiais por quatro e afastaram algum edificado da costa. A altura dos prédios passou de 15 para 12 metros e o número de quartos da totalidade dos hotéis passou de 822 camas para 706.


Mais uma vez, as mudanças não convencem os defensores do ambiente. “Eles falam na área de redução [cércea, ou altura] dos edifícios, mas a área de construção urbanística não está contabilizada, conforme achamos que deveria estar”, salienta Paulo Costa, dirigente da organização de cidadania ambiental “A Última Janela para o Mar”, criado na sequência da forte contestação que o projeto primevo provocou em algumas faixas da população do concelho.


Paulo Costa acrescenta que o grupo não está contra construções de hotéis, “porque os hotéis são desenvolvimento”. “Não somos radicais que dizemos que não queremos hotéis. Sendo aquela mata um valor paisagístico natural e emocional (há uma relação das pessoas da cidade com aquele espaço) e sabendo que é privado, embora aberto. É um postal de referência aqui da cidade. Aparece em promoções como sendo uma zona de excelência e vê-se muita gente a passear ali, tem uma vista deslumbrante”.

Clareiras escondidas e efeitos cumulativos


Por seu turno, em resposta complementar que deu por escrito ao JA, Luís Brás, da Almargem, sustenta que, na prática, “o projeto agora em avaliação pouco ou nada muda em relação ao que o precedeu, nomeadamente no que diz respeito à carga de construção que preconiza, ainda que esta esteja camuflada de verde tom questionável (ironia!!), naquele que é um dos poucos espaços intersticiais livres do litoral de Portimão”.


Na entrevista ao JA, Luís Brás chama a atenção para o alegado “esquecimento” propositado do promotor face ao conjunto do projeto: “Passa a ideia de que estamos só a falar de edifícios, mas o projeto não são só edifícios, são também acessos, estacionamentos, etc. A documentação disponibilizada não mostra claramente qual a ocupação da área do loteamento e não é claro do que estamos a falar quando falamos em afetação do projeto. Há destruição de área arborizada e a criação de clareiras”.


Essa adição de clareiras “afeta também o grupo das aves. A ocupação que houver aí, na área arborizada, tem impacto sobre as aves. Deixámos de ter árvores e passámos a ter clareiras. Não é a área toda, mas existe impacto sobre as aves”, aduz Luís Brás. Nas duas AIA não surgem, contudo, referências a eventuais prejuízos para a avifauna da zona.


Mas ao nível do conjunto dos efeitos negativos do projeto, Luís Brás chama a atenção para o que chama “impactos cumulativos”: “O Estudo de Impacte Ambiental deturpa por completo os impactos cumulativos do projeto, isto é, os impactos decorrentes do conjunto deste projeto com outros existentes e previstos na área envolvente, nomeadamente a alteração do uso do solo, o funcionamento dos empreendimentos turísticos, com a carga humana associada, a perda de biodiversidade, a alteração da paisagem, a destruição do solo pela construção e impermeabilização – recorrendo para o efeito a artifícios de escala para justificar o injustificável”.


Não é portanto apenas a zona de João d’Arens, isoladamente, que preocupa os ecologistas. Para a Almargem, o documento ignora o facto de, em termos cumulativos, o concelho de Portimão albergar já mais de 15 mil camas em empreendimentos turísticos, “totalizando mais de 37 mil, se somarmos as mais de 22 mil camas em Alojamento Local, segundo dados do SIGTUR (Sistema de Informação Geográfica do Turismo), às quais se somarão mais 10 mil novas camas perspetivadas em novos projetos”.

Paulo Costa, dirigente do grupo cívico e ambiental
“A Última Janela para o Mar”


A proximidade da linha de costa é um dos maiores problemas que Paulo Costa vê no projeto, além das questões que deram origem ao chumbo de 2019, como a densidade de construção, as espécies e o impacto visual: “Pelo facto de ser um solo com algares, com buracos, a estrutura de assentamento do edificado é muito frágil. Qualquer carga que é posta ali em cima pode acelerar a erosão e levar ao desmoronamento das falésias”, sublinha, observando que o edificado mais próximo da linha costeira se encontra a apenas cerca de 50 metros dessa linha.


A presença de algares e, portanto, de cavernas, é também aduzida por Luís Brás como potencialmente perigosa: “O algar é a comunicação de uma caverna já existente com a superfície e isso significa que existe o risco de derrocada. Se há algares [o que é o caso], pode haver cavernas e isso trás um risco associado à construção de edifícios”. A isso, o líder ecologista associa o risco de aumento da zona de impermeabilização e de zonas de existência de arenito, rocha vermelha que muito frequentemente origina situação de ravinamento e de barrancos. “Ao impermeabilizarmos o solo a montante, estamos a aumentar o escoamento e o risco da abertura de mais barrancos, promovendo a erosão e a instabilidade dessa zona”, conclui o dirigente da Almargem.

As incoerências da câmara, segundo os ambientalistas


Para além de efeitos na flora, impactos visuais, efeitos cénicos, proximidade de arribas ou da orla costeira, há um problema que subjaz: a questão legal da zona em que se pretende construir. Luís Brás jura que, à face da lei, jamais se poderia construir ali: “A questão de fundo é a urbanização. Temos o entendimento de que este Plano de Urbanização nunca deveria ter sido aprovado. E recordo que este projeto já vem de há vários anos. A própria câmara já tinha, em 2012, proposto a revisão do Plano de Urbanização (PU). Este projeto fica situado parcialmente em Reserva Ecológica Nacional (REN). O PDM enquadra as orientações do município, mas também enquadra as requisições de utilidade pública e uma delas é a REN. Parte da área afeta ao PU continua a ser REN, um local onde não pode haver edificação, mas propunham a cedência ao município, a instalação de um passadiço. A CCDR disse que à partida esse passadiço seria incompatível com o estatuto de REN. Apesar de a área edificada não estar na área da REN, está classificada como urbanizável no PU”.


Ora, de acordo com o mesmo ecologista, o PU viola flagrantemente o Plano Regional de Ordenamento do Território (PROT) do Algarve. “Quando foram definidos os termos de referência para estes planos de urbanização, a própria câmara tinha um entendimento de que, apesar de este PU incidir sobre uma área sob a alçada do PROT, e onde o PROT impede que haja construções na faixa dos zero aos 2 km (sendo que tem uma primeira faixa até aos 500 metros onde é estritamente interdita a nova construção), é uma zona que é urbanizável. A mesma câmara que vem dizendo que não quer mais betão no seu litoral, diz em 2012 que acha que aquela área é uma zona urbana e logo não se aplica o PROT”, denuncia Luís Brás.


De resto, o assunto tem sido palco de acesas discussões em sede autárquica. Há dois meses, o grupo “A Última Janela Sobre o Mar” propôs-se “cortar o mal pela raiz, ao evitar a apresentação sucessivas de projetos reformulados para João d’Arens”, segundo as palavras de Paulo Costa, daquele movimento. Nesse sentido, a organização cívica apresentou uma proposta à Assembleia Municipal há dois meses, que previa a anulação do plano de urbanização da zona, para evitar de isso estar a acontecer sucessivamente. Assim como, comparam, foi cancelado o plano de urbanização da Praia da Rocha. A maioria do PS (12 votos) naquela Assembleia chumbou a moção, que teve os votos a favor do PSD (3), Servir Portimão (3), Bloco de Esquerda (3) e um deputado independente. Os dois deputados da CDU abstiveram-se.


Ao JA, a presidente do município, Isilda Gomes, escusou-se a prestar declarações sobre o projeto e sobre a AIA em questão, remetendo declarações para mais tarde, quando houver decisão final. O que deverá ocorrer dentro de poucos meses.

João Prudêncio

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