Há pessoas que assim que ouvem falar em esquerda atiram-se para o chão. Esquecem-se que além da mão direita também existe uma esquerda, o pé direito só caminha se houver um pé esquerdo, e até o coração tem uma certa inclinação para esse lado do corpo. Trata-se de uma questão de anatomia. Precisamente, se escrevo sobre o assunto da lateralidade é porque a anatomia do corpo por vezes reflete a conformidade da alma. Carlos de Oliveira, em 1968, escreveu sobre o assunto, e eu vou reproduzir esse seu poema célebre porque as suas palavras dizem respeito a essa vontade que por vezes nos atinge de dormirmos para o lado do coração. Nas palavras de desconforto com que escreve, o seu desejo de assim ficar reflete um desejo de assim ficar imóvel. Passo a reproduzir Sobre o Lado Esquerdo:
De vez em quando a insónia vibra
com a nitidez dos sinos, dos cristais.
E então, das duas uma:
partem-se ou não se partem
as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso,
o homem que não dorme
pensa: “o melhor é voltar-me para o lado esquerdo
e assim, deslocando todo o peso do sangue
sobre a metade mais gasta do corpo, esmagar o coração”.
Dos tempos que correm sempre se diz que são estranhos, mas há tempos mais estranhos do que outros. Para além da pandemia que veio colocar as nossas faltas e misérias à luz do dia, os tempos que passam vêm pôr a nu uma violência de trato e de intenção que vinha de trás, mas agora, mais. A falta de justiça distributiva é sempre a causa maior da violência, assim como a falta de justiça jurídica é a causa do discurso justicialista. E dá a ideia de que o discurso justicialista veio para ficar. Mesmo que não existam bases para acusar, culpar, julgar em público, a fúria de julgar atinge patamares nunca antes vistos. Julga-se sem provas o vizinho, o amigo, o inimigo, a professora, o padre, o autarca, o médico, o jornalista, o Presidente. Julgar assim, sem provas, é próprio de uma cultura onde a impunidade e a falta de justiça existe. É aí que estamos.
Difícil é avaliar como estes dois polos irradiadores, tão perniciosos na sociedade em geral, como irão passar à configuração política, quando vierem as legislativas daqui a dois anos. Há quem diga que vai existir um outro partido no Parlamento, um partido maioritário, que esmagará todos os outros. Perguntei onde se sentará esse partido, para se perceber quem se prepara para perder e se prepara para ganhar. O meu interlocutor respondeu-me – “Não precisa de assentos, ocupará os lugares que já lá estão, da esquerda à direita, mas modificadas pela força da fúria, da raiva, da violência que parece querer assaltar todas as bancadas.”
Será assim? Será que vamos assistir a esse tipo de escalada? Como nos Estados Unidos da América, em Taiwan, em França, na Turquia, em Espanha? Não sabemos. Mas em breve saberemos. Juro que tenho receio de poder voltar a ser daqueles que não dormem pelo espanto de como a agressividade e o primarismo está a tomar conta de nós. Ou não estará completamente.
Pode ser que aqueles que não dormem encontrem uma forma silenciosa de enfrentar a onda. Entre esses, encontro jovens que se mantêm à parte, buscando a eficácia e a competência sem gritaria Obrigado, Carlos de Oliveira, pela parceria. Já há mais de meio século tu o sabias. Deitavas-te para o lado do coração.
Flagrante bem aventurança: Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados, sobretudo se forem juízes ou advogados com saia larga, e, já agora, se forem jornalistas tão justicialistas como calceteiros.
Carlos Albino