Ficções [20.] Um desacerto
HÁ MAIS DE MIL ANOS que em Cacela existem estruturas defensivas no local que hoje é ocupado pela fortaleza. As necessidades de defesa estavam essencialmente relacionadas com as investidas constantes de piratas e corsários. Era por mar que se faziam as viagens, que se desenvolvia o comércio, que se conheciam novas de um mundo distante, que Al-idrisi chegou também por inícios do século XII para escrever sobre as suas hortas e os seus campos de figueiras.
Em terra, as viagens eram difíceis, perigosas, incómodas. Praticamente só os almocreves se atreviam à aventura de percorrer estradas e caminhos, enfrentando os perigos, o desconforto das poucas estalagens onde era possível pernoitar. E, se possível, viajavam em grupo, armados, sempre de pé-atrás.
Só em meados do século XIX, no Algarve, começaram a ser construídas vias terrestres que se pudesse dizer benza-te-deus. Mas o péssimo estado das estradas, ainda assim, não raro obrigava os viajantes a desmontar dos cavalos ou a sair dos trens para percorrer a pé partes significativas dos percursos.
Compreende-se, pois, a importância da chegada do comboio à capital da Região. Foi em 1889, no dia 21 de fevereiro, e compreende-se que os discursos da época considerassem esse dia como «gloriosíssimo» para a «História dos Modernos Progressos do Algarve». E compreende-se também que, logo algum tempo depois, começassem as reivindicações no sentido de estender o caminho de ferro até Vila Real de Santo António. Em 1897, de visita ao Algarve, D. Carlos haverá de deixar promessa de interceder junto do governo para que a pretensão das gentes do Sotavento viesse a cumprir-se.
E não admirará, portanto, que a 14 de abril de 1906 as ruas de Vila Real de Santo António estivessem ornamentadas, que a Praça Marquês de Pombal tivesse sido iluminada para os festejos da noite, que a música festiva de várias filarmónicas se fizesse ouvir nos coretos, que os espanhóis tivessem chegado da outra margem do Guadiana para encher a Vila de movimento, ruído, alegria e salero. Não admira, claro, porque essa data marcava a chegada do comboio a Vila Real de Santo António, celebrando-se assim o fim do seu «vergonhoso isolamento» e abrindo-se perspectivas novas à economia e ao desenvolvimento.
A chegada do comboio deixava longe, e no entanto tão perto, os episódios dessa aventura que era viajar pela Região, ou sair em direcção a Beja ou à capital do País. Em meados do século XIX, por exemplo, o Bispo do Algarve conta na Câmara dos Deputados como, nesse inverno de chuva e ribeiras caudalosas, demorou praticamente um mês para fazer a viagem de Lisboa a Faro, com partida a 23 de dezembro e chegada a 22 de janeiro do ano seguinte…
HOJE, TANTOS ANOS DEPOIS, seria difícil imaginar o Algarve sem a Via do Infante. A estrada nacional 125 deixou há muito de ser uma estrada para passar a ser essen-cialmente uma rua. Uma rua perigosa onde, em média, morrem trinta pessoas por ano; uma rua congestionada, sobretudo no Verão; uma rua que junta automóveis e crianças a caminho das escolas, camiões e jovens e idosos a sair dos cafés ou das mercearias ou das casas com as portas abertas à faixa de rodagem. A introdução de portagens na Via do Infante, mais que um erro do ponto de vista da economia da Região e do país, significará sobretudo um desacerto com a História.