Materiais sustentáveis: Cana e argila na arquitetura

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As canas que, há dezenas de anos atrás, serviam para artesanato típico algarvio que tem vindo a desaparecer, têm agora um novo rumo: a arquitetura sustentável. Através de dois cursos lecionados no concelho de Alcoutim nos últimos meses, a Cooperativa para o Desenvolvimento dos Territórios de Baixa Densidade (QRER) quer provar que o uso da cana pode ser uma alternativa e um contributo para lutar contra as alterações climáticas

Durante 10 dias intensivos, entre os meses de julho e agosto, a QRER levou a cabo o curso “Transmissão de Saberes Mestre-aprendiz: Arquitetura Sustentável de Cana e Revestimentos” na aldeia de Balurcos, no concelho de Alcoutim, com 11 participantes.


“Na zona de Alcoutim, quisemos trabalhar esta vertente da arquitetura sustentável e a cana porque o Baixo Guadiana sempre foi o território onde este material teve uma utilização histórica”, começa por dizer ao JA um dos membros da direção da QRER, João Ministro, de 47 anos.

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Este curso foi lançado uma vez que a cooperativa considera que “a questão da sustentabilidade está na ordem do dia” e porque acreditam que “há oportunidade de trabalhar” nesta área.

Diretamente de Barcelona, chegaram alguns especialistas em trabalhos de arquitetura sustentável com cana, que têm o hábito de fazer vários testes de resistência em laboratório a este material, para ensinar os participantes.

Durante os 10 dias “intensivos”, os 11 participantes entre os 14 e os 55 anos trabalharam na recuperação de um antigo lavadouro de Balurcos, com o uso da cana e argila daquela zona.

“Numa parte do curso, fizemos testes com argilas locais para testar o seu valor e potencial e, de facto, chegámos a conclusão que Balurcos tem terras boas para estes trabalhos”, confessa João ao JA.

Entre os participantes, vindos de várias áreas, alguns deles têm em mente projetos na área da arquitetura sustentável, aplicando-a na agricultura, construção ou na educação, como era o caso de um professor que quer aplicar na sua escola um projeto pedagógico acerca deste assunto.

Um dos que mais se destacou foi o jovem de 14 anos, que acompanhou o pai durante todo o curso.


“O miúdo foi um dia e ficou entusiasmado. Fez o curso todo e fez todas as tarefas desde apanhar canas e limpá-las”, refere João Ministro ao JA.

A construção do túnel fez parte do primeiro curso

De planta invasora a matéria prima

Os participantes recolheram cerca de 600 canas, na zona de Balurcos, que foram posteriormente limpas, sendo aplicadas várias técnicas.


“As canas são depois rachadas, abertas, furadas ou entrelaçadas com cordas”, consoante o objetivo final, tendo sido feitos estores, armações nas paredes e tetos falsos no antigo lavadouro.


Segundo João Ministro, a cana é “uma matéria prima abundante”, considerada como uma planta invasora no passado pelas pessoas locais, que noutros tempos a colhiam para fazer cestos.


“A cana pode ser utilizada de várias maneiras e pode ser que surjam novos projetos. Esperamos que se continue a fazer trabalhos nestas áreas e a fixar pessoas que encontrem motivos para que se possam implementar em zonas mais desertificadas”, explica João.

Dando como exemplo a empresa espanhola que está “cheia de trabalho”, João considera que “há aqui um nicho que pode crescer no Algarve”, com a utilização da cana para construir sombreamentos e outras estruturas, que será “suficiente para criar postos de trabalho”.

Através deste curso, o lavadouro público de Balurcos, que estava ao abandono, “ficou mais interessante, apelativo e atrativo” e será em breve melhorado pela Câmara Municipal de Alcoutim “para ser um espaço de convívio da comunidade”.

“Não deve haver outro lavadouro como aquele no Algarve”, afirma João ao JA.

A argila foi utilizada como suporte, acabamento e revestimento


A argila foi outro dos materiais utilizados neste curso, utilizadas de várias formas para várias funções como suporte, acabamento e revestimento.


Este material tem de ser preparado anteriormente, “consoante o que se pretende”, misturando argila, areia, palha e cal.


Este tipo de materiais permite “obter construções altamente eficientes até do ponto de vista térmico e acústico”, como aconteceu no lavadouro, onde “o efeito do eco desapareceu”.


Segundo João Ministro, há uma perceção “cada vez maior para este tipo de materiais” sustentáveis e do carbono zero, uma vez que “as canas são locais, não há grandes viagens, nem materiais com químicos”.

Em novembro do ano passado, a QRER já tinha levado a cabo uma iniciativa semelhante, com a construção de um túnel em cana que ainda hoje pode ser visitado no castelo de Alcoutim.


O curso de 2020 era “muito focado na estrutura das canas” e serviu para “mostrar e sensibilizar os participantes sobre o potencial da utilização de cana em obras de arquitetura”, pois as pessoas penam que “só se podem fazer cestos ou tetos falsos”.


O túnel, feito em arco e “super resistente”, foi feito para “aguentar muito anos”, com quase 10 metros de comprimento e seis de largura.

Criatividade, inovação e canas

“O túnel mostra que é possível fazer imensa coisa, com criatividade e inovação, desde zonas de sombra a abrigos”, acrescenta.


Além de ensinar a trabalhar com a cana e também com a argila, os principais objetivos deste tipo de iniciativas da QRER são “a promoção das indústrias culturais e criativas”, com foco nos territórios do interior “para puxar e apoiar” este tipo de ações nos territórios longe do litoral.


Segundo João Ministro, atualmente existem “menos de 10 pessoas, com idade avançada”, que utilizam a cana no artesanato, para objetos da agricultura e construção.

“Alcoutim está a perder população todos os anos e a estratégia tem de ser inspirada nos recursos locais, com conhecimento, tecnologia e uma nova visão para o futuro, com as questões da sustentabilidade ambiental e usar recursos para fixar gente”, considera João Ministro.

O membro da direção da QRER acrescenta ainda que com os fogos e o abandono dos campos, “é preciso manter gente no território, apesar de não ser fácil, mas tem de ser feito. Tem de se mostrar que há oportunidades e opções”.

Este curso está envolvido num projeto transfronteiriço que junta o Algarve, o Alentejo e a Andaluzia, envolvendo na nossa região as zonas de Alcoutim e Alte, no concelho de Loulé.


Para o futuro, a cooperativa pretende instalar “uma pequena rede de espaços de incubação”, com o objetivo de “fixar pessoas que queiram desenvolver projetos de artesanato, design, marketing e arquitetura”.

Em Alcoutim irá existir, em breve, uma sala de incubação equipada com ferramentas, que servirá de espaço “onde as pessoas podem ir à procura de informação, podem-se instalar e fazer trabalhos” relacionados com a cana e a arquitetura sustentável.

Este espaço, apesar de já existir, está a ser remodelado e deverá abrir portas até ao final do ano, após ser equipado e definidas regras.

A cooperativa vai seguir com novos cursos, noutras zonas do Algarve. Em setembro, irá decorrer um curso com esparto na zona de Alte, que durará quase dois meses. O uso do esparto era uma “técnica muito comum” naquele território, “mas que está a beira de desaparecer”, pois só existem “duas ou três pessoas” de idade avançada que sabem esta técnica.


“Também há potencial com o esparto. Existe uma família espanhola já com sete gerações de trabalho que vestiu uma modelo com esparto, que foi capa da revista Vogue. Queremos mostrar que há aqui caminho para o esparto”, refere João.

Posteriormente, serão promovidos outros cursos, nas áreas da construção sustentável, do uso da pedra e do turismo criativo, onde se pretende “formar agentes para o território do interior”.


Gonçalo Dourado

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