Nem só com escoceses se faz um referendo

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Niall e Carolyn são escoceses. Esta quinta-feira, o país onde nasceram vai tomar uma das decisões mais importantes para o seu futuro: tornar-se ou não independente do Reino Unido. No entanto, Niall e Carolyn não vão poder votar. Já Roger, Hara e João, embora não sendo escoceses, têm uma palavra a dizer no referendo.

“Parece estranho que o meu país esteja a tomar a decisão mais importante em séculos e eu não tenha uma palavra a dizer”, conta ao Expresso Niall Deacon, escocês de 32 anos, a viver há três na Alemanha. “Mas seria errado darem-me um voto apenas porque nasci e cresci na Escócia. As pessoas que serão mais afetadas pelo resultado são as que lá vivem, portanto são elas que devem tomar a decisão.”

O direito a votar neste referendo é dado a todos os cidadãos com pelo menos 16 anos que sejam originários do Reino Unido, dos países da Commonwealth e da União Europeia e que residam na Escócia. De fora ficam todos os escoceses que estejam a viver fora do seu país. O mesmo acontece noutras eleições do país, mas a idade mínima é de 18 anos.

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“Dar o voto a todas as pessoas a viver na Escócia é legal, democrático e justo. Mudar agora as regras poderia levar a acusações de manipulação”, explica ao Expresso Matt Qvortrup, autor do livro “Referendums and Ethnic Conflict”.

Estes critérios são vistos com naturalidade por alguns escoceses. Mas quando o assunto é a independência e as sondagens mostram uma luta renhida entre o ‘sim’ e o ‘não’, a percepção passa a ser outra. “Talvez há uns meses não fizesse muita diferença o facto de não poder votar, mas agora com os resultados estou mais preocupada”, diz Carolyn Leslie, escocesa, 56 anos, a viver em Portugal há 26. “Não faz muito sentido que os estrangeiros na Escócia possam votar e eu não”, acrescenta, sublinhando que alguém que não tenha nascido e crescido no país não terá a mesma ligação emocional que um escocês tem.

Roger MacGinty vive na Escócia há sete anos, mas nasceu na Irlanda. Mora a 5 km da fronteira com a Inglaterra, perto de Berwick-Upon-Tweed, uma pequena localidade inglesa que, antes do século XV, passou 13 vezes de mãos entre ingleses e escoceses. Para quem vive junto à fronteira, esta não é uma barreira para as tarefas do dia-a-dia. “Vou a Inglaterra quando preciso de comprar pão ou o jornal”, conta o irlandês, de 44 anos.

Essa proximidade entre os dois países pode influenciar a forma como as pessoas encaram a independência. “Na área onde vivo, por estar próxima da fronteira, a maioria das pessoas votará ‘não’ – muitas delas são de Inglaterra.” Mas mesmo que o ‘sim’ ganhe, Roger acredita que pouco será diferente na rotina de quem lá vive. “Continuaríamos a ter o mesmo clima, os mesmos empregos e os mesmos amigos e família.”

Reino unido ou desunido?

Independentemente de onde nasceram, as opiniões em relação ao futuro da Escócia dividem-se. Roger MacGinty votará pela independência. “Não sou nacionalista. Voto ‘sim’ porque acredito que o Estado social estará mais bem protegido por Edimburgo do que por Londres. Não tenho nada em comum com a elite que governa a partir de Londres. Quero também que nos vejamos livres das armas nucleares inúteis e caras.”

Hara Harsou partilha a mesma opinião. Tem nacionalidade grega, vive há três anos no Reino Unido e há mais de dois que acompanha o debate sobre a independência. É ao ‘sim’ que dará o seu voto. “Uma Escócia independente terá oportunidade de se livrar das armas nucleares, de promover fontes alternativas de energia, de manter o sistema de educação e saúde gratuitos”, embora não esteja 100% certa que o Partido Nacional Escocês (SNP – Scottish National Party) “seja o meio para atingir esse fim”.

Por outro lado, há quem veja a permanência da Escócia no Reino Unido como a melhor solução. “Genuinamente, não consigo ver nenhuma vantagem real na independência da Escócia. Estou preocupada com o facto de o desejo de muitos escoceses votarem ‘sim’ ser mais emocional do que prático”, afirma Victoria Armstrong, 28 anos, de origem escocesa e inglesa, atualmente a viver em Inglaterra.

“Vejo muitas promessas a serem feitas por Alex Salmond [líder do SNP] e pela campanha do ‘sim’, mas não sinto que sejam realistas”, realça Victoria, referindo-se, entre outras, à perspetiva de a Escócia vir a enriquecer com as reservas de petróleo do Mar do Norte que, segundo ela, “são escassas há uma década”. E refere que isto faz ainda menos sentido quando “Westminster oferece o Dev Max [“devolution maximum”, ou seja, a transferência para a Escócia de alguns poderes que até agora estariam sob a alçada do Reino Unido], que dará quase todos os benefícios da independência, sem nenhuma das suas desvantagens”.

Como um alentejano em Portugal

Os 22 anos em que Maries Cassells viveu nos Estados Unidos (EUA), onde nasceu, permitem-lhe agora olhar para trás e “valorizar o quão unido o país era”. A viver na Escócia há mais de 50 anos, Maries, hoje viúva de um escocês, é clara na posição que defende. “Sou totalmente contra a independência”, afirma, sublinhando que “já muito foi feito em nome do Reino Unido”.

Maries lembra o que sentia no seu país de origem. “A bandeira americana faz toda a gente sentir-se americana, em primeiro lugar. Depois, a identidade de cada um segue para o Estado em que vive e, de seguida, para a terra-natal.” É assim que se assume: primeiro americana, depois britânica e então escocesa.

Também a escocesa Carolyn Leslie descreve de forma semelhante a sua identidade. “Digo sempre que sou britânica, como qualquer outra pessoa. No entanto, tenho também a minha identidade própria dentro da Grã-Bretanha, como um alentejano tem a sua identidade em Portugal. Tenho orgulho em ser escocesa, mas quero ser escocesa dentro da Grã-Bretanha.”

E para quem não é britânico, o que representa o voto desta quinta-feira? “O referendo que aí vem é uma oportunidade incrível para os escoceses e as outras pessoas que vivem no país tomarem as rédeas das suas vidas”, aponta a grega Hara Harsou. Ainda assim, bastam seis meses de residência na Escócia para se ter direito de voto, o que pode ser visto como “pouco tempo para tomar uma decisão sobre algo tão importante”.

Mesmo três anos podem não ser suficientes. João Pedro Ferreira, 26 anos, chegou à Escócia em 2011, onde está hoje a fazer doutoramento na Universidade de Edimburgo. Até há dois dias, estava inclinado para votar ‘sim’. “Sinto que a Escócia tem tido pouco poder para controlar o seu futuro e tem interesses diferentes do governo de Londres”, apontava, referindo a aposta nas energias renováveis, inovação e conhecimento. No entanto, não negava as dificuldades enumeradas pela campanha do ‘não’ face à independência. Uma delas é a incerteza sobre o que acontecerá até a Escócia voltar a entrar na União Europeia.

No entanto, algo fê-lo mudar de ideias. Um email da Universidade de Edimburgo, recebido na terça-feira, descrevia os riscos que a independência da Escócia poderia trazer à área da investigação, destacando que o que já foi alcançado “não seria possível sem o financiamento do governo do Reino Unido e de outras agências fora da Escócia”.

A universidade argumentava que, com a independência, “é pouco provável que a investigação científica prospere numa Escócia independente”. Sendo uma realidade que o poderá afetar diretamente, o email surtiu um efeito. O estudante de doutoramento decidiu que irá votar contra a divisão do Reino Unido.

Ganhe o ‘sim’ ou o ‘não’, quão diferente sairá a Escócia deste referendo? “A campanha tem sido incrível. O génio saiu da lâmpada”, descreve Roger MacGinty. “Mesmo que ganhe o ‘não’, toda a gente em todo o lado está a falar sobre política.”

Bandeiras nas ruas, autocolantes nas janelas e pins nas lapelas vão surgindo nas várias cidades. “No geral, as pessoas expressam as suas opiniões publicamente”, conta Hara Harsou. “Basta apenas dez minutos a andar pelas ruas de qualquer cidade escocesa para perceber a quantidade de casas que têm autocolantes e posters de ‘não’ ou ‘sim’ nas suas janelas.”

O referendo motivou a população. “Pessoas que normalmente não se interessavam pela política param agora nas ruas e falam sobre o governo e o sistema de saúde. O que é claro é que as pessoas não querem o status quo”, defende Roger MacGinty. “Haverá mudança. Agora, se esta mudança conduzirá a uma maior transferência de poderes ou à independência da Escócia, saberemos esta quinta-feira.”

RE

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