Nem tudo é opinião!

LP
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Colaboradora. Designer.

Acontece com a verdade factual e a mentira e também com o que é eticamente certo e errado. O uso do relativismo opinativo está a dar cabo da maneira como nos relacionamos uns com os outros nas sociedades ocidentais. Apouca-se a verdade fazendo-se-lhe equivaler uma mentira e enfeitando o conjunto com o jargão “é uma questão de opinião”. Verdades insofismáveis e plenas de verdade científica, como o Homem foi à Lua, a terra é redonda, o novo coronavírus existe mesmo, o Bigbang é o princípio do Universo, somos primos dos macacos, tornaram-se verdades relativas, num mundo com uma educação insuficiente, uma universidade estupidamente especializada, uma aprendizagem científica coxa e pouco cartesiana. A que se juntam níveis e qualidades de leitura medíocres entre as gerações mais jovens, uma iliteracia em crescendo e uma “aprendizagem” feita em redes sociais e postagens de Youtube.


Na acessível internet tudo se equivale, o certo e o errado. Tudo está ali à mão, ao alcance de um click. Mas sobretudo, sofismas ou falácias como o fenómeno OVNI, as teorias da terra plana, o negacionismo face ao 11 de setembro de 2001, ou os miseráveis efeitos da atual pandemia na saúde humana vestem-se de roupagens mais atrativas do que complexas teorias quânticas, ou a chata (e académica) descoberta da gravidade, ainda que com base numa prosaica maçã, ou as complexas leis universais de Kepler, ou as viagens de Darwin pelo arquipélago dos Galápagos.


Neste novo universo, esbate-se o primado da ciência, que passa a ser “um conjunto de opiniões”, em que se acredita ou não, tão válido como as verdades bíblicas, ou do Tora, ou do Alcorão. O Facebook, o Instagram, o Twitter, facilitam esta nova normalidade, este relativismo idiota. Não é por acaso que Trump e Bolsonaro escolhem as redes sociais para propagarem as suas verdades entre os milhões de imbecis que os seguem: é fácil, barato e de propagação instantânea e garantida.


O fenómeno estende-se ao eticamente certo e errado. E aqui, num mundo conceptualmente mais abstrato, numa caótica panóplia de subjetividades, ele dá-se com efeitos potencialmente mais destruidores, arrasadores da nossa mundividência como seres éticos. Há tendência para um nivelamento do que se considera certo e errado se, do ponto de vista ético e ideológico, não há certo nem errado, tudo se equivale. Tudo vale o preço inócuo de uma simples opinião, diga-se uma coisa ou o seu contrário. O diabo é o “eu cá acho que…”. E assim como se mandam para o caixote do lixo da História centenas de anos de estudos científicos aturados, vidas perdidas atrás de um achado lá conseguido ao fim de decénios, séculos de trabalho intenso, atiram-se também escritos, ideias, filosofias, ciências humanas, celebrações e descobertas do intelecto. Karl Marx, por exemplo, não é apenas “o primeiro comuna”, um conjunto de opiniões que poderiam ter visto a luz no Facebook, ou num blog. Ele é um cientista social incontornável na história do pensamento humano e das ciências sociais e económicas.


Lembrei-me de tudo isto a propósito da luta anti-racista que tem estado na agenda nos últimos dias. Nos Facebooks da vida, mas por vezes também – embora de forma enviesada ou até subliminar – na comunicação social, entre comentadores, provém amiúde o juízo segundo o qual não há diferenças substanciais entre racistas e antirracistas, homofóbicos e defensores dos direitos dos homossexuais, pró-nucleares e ambientalistas. Num mundo ideologizado, esses conceitos são o bizarro prolongamento do velho adágio, já de si inextricável, que faz equivalerem-se nazis e trotskistas, fascistas e antifas, comunistas e reacionários. Tal como se equivalem ciência e religião nas páginas estúpidas do Face.


Não, o mundo não é a preto e branco e muito menos monocolor. Não há empatia, sensibilidade ou compaixão no racismo, nem na homofobia, nem no fascismo. Por muitos que tenham sido historicamente os erros, os crimes (sim, os crimes, e foram aos milhões) cometidos em nome de causas generosas, nunca a causa primeva deixa de sê-lo ainda que se torne pervertida e desalinhada do seu rumo.


Por isso, não sendo comunista e reconhecendo os seus crimes, e posicionando-me claramente contra eles, nunca serei anticomunista. Há uma base solidária, empática e justa na causa comunista, muito para lá, a galáxias de distância, de Pol Pot, Mao, Stalin, Kim Il Sung, e dos crimes abomináveis e imperdoáveis que cometeram. São intrinsecamente perversos e serviçais de uma ideologia que foi pervertida e cuja origem se alicerça no desejo humano de modificar o mundo e fazer justiça social.


Ao contrário, sempre serei antifascista. Não há base solidária nem desejo de luta contra injustiças imemoriais em Mussolini, Hitler, Franco, Salazar, Pinochet ou Bolsonaro. São intrinsecamente perversos e serviçais de uma ideologia que não foi pervertida e cuja origem está nos antípodas do desejo humano de modificar o mundo e fazer justiça social.


Do mesmo modo, por muito que alguns comentadores repisem e o Facebook matraqueie, não há nada de empático, nem justo, nem intrinsecamente bom, pacífico, solidário, nos neonazis que saem à rua nas cidades europeias para combater os antirracistas.


Mas há ideias puras de justiça, igualdade e solidariedade nos muitos milhares de homens e mulheres que, em todo o mundo, estão a sair à rua contra o racismo e a xenofobia e para contestar os métodos policiais, violentos e racistas.
Mesmo que mostrem cartazes estúpidos e acéfalos. Mesmo que de vez em quando alguns deles, tola e ignorantemente, vandalizem uma estátua, na voragem de uma justa contestação.


Mesmo assim. Tal como nunca serei anticomunista, jamais serei “anti antirracista”. Muito menos por causa de uma pichagem num pedaço de bronze perpetrado por meia dúzia de vândalos.

João Prudêncio

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