“Nunca de costas para a porta de entrada!”

Estes tempos de celebração dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 são bons para recordar como foram as coisas nessa altura e, sobretudo, como eram as coisas antes… 50 anos é já tempo suficiente para se poder começar a fazer uma história sólida do que de facto então se passou e do que de facto se passava antes. A vivência não é transmissível, a não ser através da sua decomposição em elementos mais simples e factuais, isto é, despojando-a de toda a emoção, de todo o alvoroço, de toda a empolgação. E despojar o 25 de Abril da emoção, do alvoroço e da empolgação é “matar” o 25 de Abril, que foi sobretudo isso! Quem o viveu, viveu! Quem não o viveu, nunca saberá o que perdeu; só poderá saber o que (todos) ganhámos.

Nos tempos que vão correndo, em que de novo se erguem forças saudosas do antes do 25 de Abril, valerá a pena recordar como se vivia naquele tempo: não sendo permitidos sindicatos nem manifestações, qualquer ajuntamento (a não ser para entrar nos estádios de futebol) podia ser motivo para uma carga policial. Já li que, quem não se interessasse por política, nada teria a temer. Isso seria verdade, mas o reverso dessa medalha era não poder protestar por melhores salários ou melhores condições de trabalho, coisas então muito negligenciadas.

Também não se podia pedir (e ainda menos exigir) melhor ensino ou melhor saúde: o governo-providência tudo decidia por nós, numa altura em que as escolas técnicas e os liceus eram escassos e quase não havia hospitais e só as clínicas privadas tinham alguns recursos! Tudo era decidido pelo governo a seu bel-prazer e só quem tinha dinheiro acedia ao que queria. Quem não tinha, ou emigrava a salto ou vivia bastante mal. Isto, para já não falar nos grandes tabus que eram a guerra colonial (que tantas vidas destruiu) e a liberdade de expressão, porque tudo isso era considerado “política”! E era! E é! Uma frase então muito batida era “a minha política é o trabalho!”, significando com isto “eu não me meto em sarilhos!”. Mas os sarilhos vinham ter connosco. O medo estava solidamente instalado e fazia parte do nosso quotidiano: falava-se baixo para não se ser ouvido e eventualmente mal interpretado pelos informadores da polícia política que, porque também eles bastante ignorantes, podiam fazer-nos correr riscos sérios. A talho de foice, lembro de uma livraria de Lisboa (a Livraria Ler, em Campo de Ourique) foi sujeita a uma busca por livros proibidos, e (entre outros) foi apreendido pela polícia um livro com o nome bem suspeito de “O reflexo condicionado” de um ainda mais suspeito Ivan Pavlov! Esse livro era (e é) de psicologia e fazia parte do respectivo programa liceal! Na rua, não se podia beijar um/uma namorado/a nos lábios porque isso era proibido, tal como era proibido usar isqueiro sem ter “licença de isqueiro”! Todos os jornais, todas as revistas, todos as peças de teatro, todos os filmes, eram sujeitos a uma Comissão de Censura, que ia, nos jornais e revistas, de cortar palavras a frases e textos completos, e no teatro e cinema, a cortes de cenas ou falas entendidas pelos censores como reprováveis ou perigosas.

Por reprováveis ou perigosas entendiam-se citações pouco simpáticas ao governo, notícias que dessem conta de liberdades por cá inexistentes, todas as menções a sexo e muitas outras coisas…. Recordo a título de exemplo que nas mortíferas cheias de 1967 a contagem de mortos pela imprensa parou, por ordem oficial, em 426, sendo que o número real jamais foi apurado, mas terá andado bem para lá do dobro! Assim sendo, o número verdadeiro de mortos, que se sabia ser muito superior, passou a ser motivo de sigilo, de censura e, portanto, de medo! O regime era o do medo!

Pessoalmente, recordo-me que, já muito depois do 25 de Abril, ainda me sentava nos cafés, restaurantes e outros locais públicos, instintivamente sempre, mas sempre, de frente para porta de entrada. Nunca se sabia quando seriamos obrigados a uma fuga apressada ou tão só a ter cuidado com alguém suspeito que entrasse.

Hoje, tudo isto podem parecer bizarrias, coisas ridículas, medos infundados (na verdade, nunca fui preso ou interrogado pela polícia) mas o que quero sublinhar é que o nosso estado de alma, esse, era de constante vigilância sobre os nossos pensamentos, as nossas palavras, os nossos actos, sobre nós próprios. Mas veio um dia, o dia 25 de Abril de 1974, em que tudo mudou! Recordo que, num dos primeiros dias de liberdade, assisti a um pequeno choque entre dois carros no Marques de Pombal, em Lisboa. Os dois condutores saíram dos carros e dizia o primeiro: “Amigo, desculpe! A culpa foi minha!” Retorquiu o outro: “Não senhor! A culpa foi minha!” E lá continuaram os dois enquanto me afastava… Não sei como acabou a “contenda”, mas para mim, isto representou o ambiente de cordialidade que até então o medo tinha tornado impossível. Claro que tal franqueza não poderia durar muito, mas ilustra o ambiente que então se viveu e que se julgava não poder voltar mais! É disso que hoje não podemos estar tão seguros. É contra isso que hoje temos de lutar. A liberdade nunca é um bem garantido: tal como as plantas, tem de ser regada, acarinhada e sempre cultivada e exercida. Sob pena de poder definhar e morrer. Há que estar sempre vigilante e nunca, mas “nunca de costas para a porta de entrada!”

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1 COMENTÁRIO

  1. Gostava que o autor desse uma explicação sobre o que quis dizer com isto : ” E quase não havia hospitais” isso não é verdade ! E sobre as outras coisas só lhe digo o seguinte: Não se esqueça da realidade dos outros países europeus no mesmo período. Não se esqueça, também , quando um país está em guerra não há lugar para palermices !
    Daqui a 50 anos ainda deve de andar de Chaimite de um lado para o outro …

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