O adail Lopo Barriga e a expedição contra o castelo de Amagor

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Como é de conhecimento geral, Nuno Fernandes de Ataíde, alcaide-mor de Alvor e capitão de Safim, foi dos maiores bellatores da História da Expansão Portuguesa, tendo a sua capitania correspondido ao apogeu da presença militar lusa em Marrocos. Não se pense, porém, que a criação do protectorado português no Norte de África foi exclusivamente possível graças ao labor político e militar de Ataíde. Na realidade, o sucesso da capitania do “nunca esta quedo” deve-se, em parte, ao grande valor dos homens que acompanharam Nuno Fernandes na gesta norte-africana e de entre os quais se destaca, desde logo, Lopo Barriga, o braço direito do célebre capitão de Safim. De facto, a figura deste cavaleiro tem atravessado os tempos envolta num misto de realidade e fantasia, adquirindo uma dimensão onde muitas vezes o factual se confunde com o lendário. Posto isto, convém esclarecermos quem foi efectivamente Lopo Barriga, antes de nos debruçarmos sobre uma das suas façanhas militares.

Frontispício de Descripción general de África, sus guerras y vicisitudes, desde la fundación del mahometismo hasta el año 1571, de Luis del Mármol Carvajal


À semelhança de tantos outros portugueses da centúria quinhentista, Lopo Barriga foi um militar que ascendeu na carreira das armas no teatro de operações hostil e sangrento que foi a cruzada portuguesa em Marrocos. Encontramo-lo inicialmente a prestar serviço em Arzila, tal como atesta Bernardo Rodrigues nos Anais de Arzila. (Vol. I, Liv. I, Cap. VIII). Entretanto, Diogo de Azambuja, que em finais de 1507 se preparava para tomar Safim, escreveu a D. Manuel a solicitar reforços. Foi então que o “Venturoso”, já nos inícios de 1508, enviou para Safim quatro navios comandados por Gonçalo Mendes Sacoto e onde, segundo Damião de Góis, seguia Lopo Barriga com reforços (Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, Liv. II, Cap. XVIII). Foi a partir de então que Lopo Barriga, nomeado adail (comandante da cavalaria), encetou a fase mais intrépida da sua carreira como guerreiro. Nuno Fernandes de Ataíde, que o tinha em grande consideração, manteve-o no cargo ao ser nomeado capitão de Safim, em 1510, e foi certamente por sua recomendação que o rei lhe fez mercê em 1511 (A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 8, fl. 105v) e que em 1515 foi feito “fydalgo de cora d’armas”, aludindo a referida carta de nobreza à vitória alcançada pelo adail na expedição contra o castelo de Amagor: “por força d’armas, entrou e tomou hum castello em Xiatima, em que se o dito Xarife fazia forte, honde morreram e captivaram muitos Mouros” (A.N.T.T., Gaveta 15, maço 18, N° 28). É precisamente o episódio referido nesta carta de nobreza a que de seguida aludiremos de forma mais detalhada.

Brasão de armas dos Barrigas em Tombo das armas dos reis e titulares e de todas as famílias nobres do reino de Portugal intitulado com o nome de Tesouro de nobreza. A.N.T.T., Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 21, fl. 52


Ora, decorria o ano de 1515 quando Nuno Fernandes de Ataíde, concentrado no projecto da conquista de Marraquexe após a vitória portuguesa frente aos exércitos de Fez e Méknes, pretendeu isolar política e militarmente a dinastia hintata, sendo que para tal se tornava imprescindível inviabilizar qualquer aliança entre o rei de Marraquexe e o xerife do Suz. Foi nesse contexto que, tomando Lopo Barriga conhecimento de que Muley Ahmed Aláreje se encontrava aquartelado no castelo de Amagor, pediu reforços ao capitão de Safim para atacar o xerife de surpresa. Qual a localização de Amagor? De acordo com as crónicas quinhentistas, Amagor apresentava-se como um castelo forte, construído no cimo de uma montanha rodeada por dois rios e por múltiplas aldeias de gente aguerrida, na áspera e árida região de Heha, no sul de Marrocos (Luis del Mármol Carvajal, Descripción general de África, Liv. III, Vol. II, Cap. XVI). Mas nem a dificuldade do terreno nem a distância a que este alvo se encontrava de Safim desanimaram Lopo Barriga. A brevidade com que o capitão mandou Álvaro Mendes de Cerveira com duzentos cavaleiros e cinquenta besteiros e espingardeiros ao encontro do adail indica que o plano terá, desde logo, espicaçado o belicoso espírito de Ataíde. E foi então que reunidas as forças portuguesas, apoiadas por mil mouros de pazes da Xiátma, foram dar sobre o castelo de Amagor na segunda-feira santa, duas horas antes do pôr-do-sol. Referem os cronistas que a súbita chegada dos sitiadores provocou tal pânico na população que esta procurou a fuga imediata. De resto, a notícia da evasão do xerife foi o quanto bastou para Lopo Barriga decidir atacar de imediato o castelo. Os defensores de Amagor opuseram forte resistência, obrigando os atacantes a recuar por duas vezes. Porém, o terceiro ataque foi de tal forma violento que os sitiadores romperam as defesas adversárias e entraram no castelo chacinando os adversários.

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Segundo a Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, de Damião de Góis, foi tal o pavor provocado pela entrada dos portugueses que os moradores lançaram-se pelo “muro, & rochedos pera se saluarem, de que morreram a ferro duzentos, & dos que se lançaram pelo rochedo abaixo mais de mil almas, entre homens, mulheres, & mininos, de que, muitos morrerão espetados em aruores, que hauia no rochedo por onde se lançauam” (Liv. III, Cap. LXXII). O desespero da população foi tal que, convencidos de não poderem escapar, despedaçavam os seus próprios cavalos atirando-os do penhasco, de modo a não sobrarem para os cristãos. Ainda assim, a presa contou com cento e oitenta e cinco cavalos e quatrocentos cativos, encontrando-se entre eles o alcaide de Amagor, que era tio do xerife. Repartido o saque, os mouros de pazes retornaram à sua comarca, regressando os portugueses a Safim com os cativos, onde foram recebidos efusivamente e acompanhados por Nuno Fernandes de Ataíde em procissão até à Sé.

Foi um dos muitos episódios que construiram a reputação de Lopo Barriga enquanto guerreiro intrépido e feroz, de tal forma que, quando se lançava alguma maldição a alguém, rogava-se a praga “lançadas de Lopo Barriga te colham”. Para os interessados em aprofundar conhecimentos sobre a expedição contra o castelo Amagor, recomenda-se a leitura de Nuno Fernandes de Ataíde, o “nunca está quedo” – A acção do capitão de Safim no apogeu da presença militar portuguesa em Marrocos, tese de doutoramento que nos encontramos a preparar para apresentar no presente ano lectivo à Universidade de Huelva.

Fernando Pessanha

Historiador

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