O drama dos professores contratados. Entre a paixão e a angústia há quem não desista da profissão

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Depois das férias veio o choque. A rotina mudou, mas não pelo regresso ao trabalho. Antes pelo contrário. Carla Lopes está quase sempre agora à frente do computador. Simplesmente à espera. Na esperança de conseguir uma vaga numa escola. Têm sido assim todos os dias desde 28 de agosto, quando a Direção-Geral da Administração Escolar divulgou os resultados do concurso da contratação inicial de professores na rede pública.

“Neste momento já estou inscrita no Centro de Emprego. Tenho 11 anos de serviço e estou em 4º lugar a nível da graduação e mesmo assim não sei se consigo colocação. Tenho esperança, mas não sei”, confessa a professora de Informática do 3º ciclo.
Carla tem 39 anos e 11 de serviço. Licenciada em engenharia de sistemas de informática na Universidade do Minho, trabalhou durante cinco anos em empresas. Acabou por seguir a carreira docente por um acaso. “Arranjei entretanto um marido que é professor e por influência dele decidi experimentar e apaixonei-me pelo ensino. Resolvi então profissionalizar-me para poder seguir a profissão”.

Durante oito anos, Carla conseguiu sempre um contrato anual com horário completo. Mas desde há três anos começou a enfrentar dificuldades. “Há dois anos já estava a desesperar, há um ano só consegui vaga na terceira ronda de colocações. Foi um choque muito grande em 2012 e 2013. E continua a sê-lo todos os anos”.

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22 mil professores contratados sem colocação

Carla faz parte do conjunto de 22 mil professores contratados que não conseguiram colocação no concurso inicial. Do total de 25 296 docentes que se candidataram a um contrato numa escola pública, apenas 2833 conseguiram lugar.

São vários os professores que consideram que a bolsa de contratação de escolas (BCE) é um sistema injusto. “Este ano há pessoas que estão muito atrás de mim e que passam à minha frente. Vou pedir para mostrarem os critérios para perceber, porque há situações um bocado flagrantes”, comenta Carla.

Isabel Gonçalves também diz não perceber os critérios na colocação de professores, mas confessa que já desistiu de aceitar um horário mais completo longe de casa, para poder estar perto da família.

“Não me lembro de ficar com o horário completo, mas tenho que fazer opções. Prefiro um horário mais reduzido numa escola mais perto de casa do que um horário completo numa escola distante. Tenho duas filhas e não posso lecionar longe de casa. Neste momento, concorro só para o Porto, Braga e Viana”, explica a professora de História, de 35 anos, frisando que a escola mais longe em que ficou colocada foi na Póvoa do Varzim, durante um ano.

Procurar part-time fora da área

Com duas décadas de profissão, Isabel espera pelo menos conseguir algumas horas para poder ter um contrato. “Tenho esperança de ficar com seis horas, se não ficar com nenhum nem sei. Preciso de um contrato com o Ministério”.

Esta professora de História também já está inscrita no Centro de Emprego e está disposta a aceitar um emprego mesmo fora da área de formação.“Uma professora com horas ganha cerca de 500 euros limpos,se eu ficar com menos como consigo viver com duas filhas? Já estou à procura de um part-time numa loja ou noutro sítio”, conta Isabel, que acrescenta recusar trabalhar em centros de explicações onde pagam e 2,5 euros à hora.

Licenciado em Artes Plásticas, o seu apelido parecia ditar a sua real vocação. Gil da Silva Ensinas tornou-se professor de Educação Visual e Tecnológica numa escola do ensino privado há cerca de 21 anos, na Nazaré. Foi aí que passou a maioria da carreira.

Mas nos últimos quatro anos, as condições de trabalho “foram-se degradando”, diz o professor. Foi nessa altura que decidiu especializar-se em Educação Especial e concorrer para o serviço público de escolas.

No ano passado, teve “sorte”, admite. Foi contratado pela BCE já em Novembro para Vieira de Leiria.“Fazia 80 km por dia, era um gasto acrescido, mas sentia-me muito bem nesse agrupamento de escolas”. Reconhece, porém, que este ano poderá não ter a mesma sorte.

“Estabilidade profissional? Esqueçam”

Hoje, com 59 anos, Gil está longe de ter a estabilidade profissional expectável nesta fase madura da vida. “No panorama do ensino em Portugal não existe estabilidade. Esqueçam. Eu por exemplo, já tenho uma idade avançada, mas estou numa situação semelhante a colegas mais jovens. Muitos deles já desistiram e foram obrigados a mudar de área ou emigrar.”

Os números dão razão a Gil Ensinas. No último concurso do Ministério da Educação registou-se uma queda de cerca de 44% do número de candidatos ao serviço público de ensino. Uns são obrigados a mudar de área e arranjar emprego abaixo das suas qualificações, outros resolvem emigrar em busca de um futuro melhor.

“Estamos a assistir a uma uma debandada geral do sistema público de ensino. Quase 44% de docentes desistiram de lecionar. Tratam-se mal os professores, na sua maioria são pessoas com alta formação. Muitos professores contratados têm mestrado e doutoramento. Se o ritmo de desistência da profissão continuar a esta velocidade , Portugal corre o risco de recorrer a recrutamento fora do país, o que é muito grave, porque estamos a prescindir de profissionais com experiência”, afirma ao Expresso o presidente da Associação Nacional de Professores Contratados (ANPC), César Israel Paulo.

Segundo o responsável, é urgente proceder à criação de um modelo de concursos que se articulem entre si “único e justo” de forma a responder ao crescente desgaste da profissão.

“Portugal pode ter que recrutar professores lá fora”

“Esperamos que o Ministério do próximo Governo venha refletir com calma esta situação e que estude casos como o Reino Unido que foi contratar milhares de professores à Índia. Portugal pode ter que recrutar professores lá fora. É vital pensar a médio e longo prazo ”, adverte César Israel Paulo.

De acordo com a Feredração Nacional de Professores (FENPROF), relativamente à primeira fase de contratação de professores verificou-se um nível de colocações mais ou menos semelhante ao do ano passado ou até superior. No entanto, serão os próximos tempos que definirão o quadro geral.

“Em termos qualitativos é o que já esperávamos, temos uma contratação nacional que responde a apenas apenas 2/3. O resto depende da bolsa de contratação. É um sistema perverso para os professores pelos critérios , mas para o sistema educativo também”, defende Vitor Godinho, da FENPROF.

Na opinião de Vitor Godinho, a contratação pela BCE atrasa a colocação de professores, sendo esse o motivo que terá levado ao adiamento do arranque do ano letivo. “Sobretudo em ano de eleições, o Ministério teve o cuidado de atrasar o arranque do ano letivo para ter já os professores colocados. Ou seja têm consciência que o processo de colocação de professores é lento”, acusa.

Ministério prevê arranque do ano letivo “tranquilo”

Contactado pelo Expresso, o Ministério de Nuno Crato nega essa tese, reiterando que o novo calendário escolar visa garantir um maior equilíbrio nos três períodos. “É sempre [tudo] feito em função dos feriados e das férias e em que o primeiro trimestre contempla as habituais 14 semanas de aulas.”

Relativamente à colocação de professores, o Ministério da Educação disse esperar um arranque do ano letivo “tranquilo” com a maioria dos docentes colocados. “Tudo estará preparado para que o ano letivo comece na altura própria e as escolas que assim o estabeleceram possam iniciar o novo ano logo dia 15. A larguíssima maioria dos professores estão já colocados nas escolas e os diversos concursos de preenchimento de necessidades adicionais estão adiantados cerca de dez dias em relação ao habitual”, garante fonte do MEC.

Este ano, a antecipação dos concursos de colocação de professores e o arranque mais tardio do ano letivo deverão evitar os problemas registados no ano passado nas escolas. Enquanto isso, Carla, Isabel e Gil – tal como milhares de outros professores – não têm alternativa se não aguardar pela conclusão dos outros concursos e confiar na sorte.

RE

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