O que tem o Património a ver com as catástrofes?

Nestes tempos agrestes que vivemos, muita coisa nos passa pela cabeça. Ver as imagens de um país devastado (seja por que razão for) e de populações em fuga, dói-nos nos olhos e sobretudo no coração, na alma! Mas nós estamos em nossas casas, no conforto do refúgio que de alguma forma construímos, e podemos sempre desligar a televisão. Eles, abandonam tudo isso e fogem de casa, já não um refúgio, mas um lugar perigoso onde a própria vida está em risco! E, além da fuga apressada e dolorosa para o desconhecido que parece ser, estranhamente, o único porto seguro, ficam para trás todas as memórias, todas as recordações da vida que foi sendo construída.

Frequentemente, entrecortadamente, exprimem-se desejos esperançosos de voltar um dia, o mais breve possível.

Mas esse “voltar um dia” será outra dura provação: a cidade, a vida, tal como era conhecida e vivida, não mais existirá! A cidade (a vila, a aldeia, a casa) não será então mais que um amontoado de cacos, de destroços, de pólvora queimada, de reminiscências com odor e forma completamente alterados. A vida íntima de cada um estará devassada, exposta e espezinhada, se não roubada. A memória será então confrontada com uma realidade diferente da que cada um guarda em si! Faltarão o próprio lar de cada um, amorosamente construído e os locais habituais, tidos como perenes como jardins, ruas, lojas, escolas, enfim, tudo! E faltarão amigos, muitos amigos, e muita gente de encontro diário, gente que nem sequer se sabe quem era, mas então existindo e hoje sem sequer saber se ainda existem. A falta de pontos de referência, a ausência de memórias, para além das precárias condições de vida tornarão mais fácil a dominação de um povo.

É o que acontece no rescaldo das guerras e, quantas vezes, é esse o seu objectivo. Os locais da memória ainda existem, mas estão destruídos, ou desfigurados. E a memória constantemente remete para não mais existentes recordações, para dolorosas ausências. É por esta razão que se torna manifestamente importante a preservação de pontos de referência enquanto sinais identitários. Foi por isso que, após a Revolta de Varsóvia perante Hitler, este “puniu” a cidade com a destruição total, em Outubro de 1944. No fim do conflito, duas opções se colocavam: ou a construção de uma cidade completamente nova sobre os escombros dos bombardeamentos hitlerianos, ou a reconstrução do que existia antes da vingativa destruição. Mesmo antes de o poder instituído decidir o que faria, o povo, tão cedo quanto Janeiro de 1945, começou a reerguer, por entre os blocos de gelo e neve que cobriam a cidade, a Varsóvia como a conhecia. Hoje, por isso mesmo, é Património Cultural da Humanidade.

Recordemos que, após 1755, mesmo tendo o Marquês de Pombal decidido reconstruir Lisboa como uma cidade moderna, respeitou igrejas e outros pontos de referência que se tinham mantido de pé, tendo-os feito incluir na nova malha urbana, dita pombalina. São dois reconhecimentos, distantes duzentos anos, da importância do que significam as nossas memórias comuns, o nosso passado comum, os nossos pontos de referência.

Já dizia Baudelaire que “a cidade muda mais depressa que o coração de um mortal” *, e é esse coração, esses corações, que é preciso alimentar. É por isso essencial a protecção de monumentos, de ícones e de elementos identitários de um povo. É por isso que se torna fundamental saber onde e como guardar e proteger os espólios dos museus, em caso de catástrofe. É por isso que, mesmo em tempo de paz, é essencial à manutenção da identidade de um povo, a conservação de edifícios, de monumentos e de outros de pontos de referência (praças, mercados, feiras, etc), porque tudo isso é património de todos, e é a própria identidade que está em jogo.

Quando se “remodelam” edifícios importantes, em nome do turismo, por exemplo, mantendo o exterior mas demolindo completamente o seu interior, está-se a praticar um atentado, não só à integridade do edifício, como à nossa memória. É um pouco como dizer que a casca de um ovo é o próprio ovo! Claro que os turistas, embora não agradecendo (até por desconhecimento), poderão nem dar por isso mas os seus artífices (mesmo que de quinta ou décima geração), ressentirão essas perdas de memórias. As memórias de um povo não estão exclusivamente contidas em monumentos, estátuas comemorativas ou em pontos em que algo de importante aconteceu, mas também em ruelas pouco relevantes, em esquinas de passagem, ou em lojas que se tornaram parte do tecido humano. Quer isto dizer que não se pode “mexer” na cidade? Não! Claro que não! Mas o “mexer” em áreas já construídas e com vida (ditas consolidadas) tem de ser feito com cuidado, parcimónia e contenção, o que poucas vezes ocorre.

Naturalmente, numa guerra, num sismo ou numa cheia, tudo fica fora de controle e a protecção é muito dificil ou mesmo impossível. São estes eventos para que temos de estar preparados e saber o que fazer quando ocorrem: salvaguardar os bens móveis (e onde), proteger os bens imóveis (e como) depois de, em primeiro lugar, cuidar dos seres vivos atingidos, esse inestimável património que somos todos nós, porque esse será sempre o património mais vulnerável.

Fernando Pinto

*Le vieux Paris n’est plus (la forme d’une villeChange plus vite, hélas! que le cœur d’un mortel)
Charles Baudelaire, « Le cigne », Les Fleurs du Mal, Paris, 1857

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