O racismo que está na ordem do dia

O racismo não tem base étnica, nem é uma característica inata do ser humano. Esta afirmação não carece de maior prova que ver crianças de etnias diferentes a brincarem umas com as outras, para se perceber que entre elas não há qualquer espécie de antagonismo ou rejeição. E isto é tanto mais verdade quanto mais tenra é a idade. Portanto, a xenofobia e o racismo são aquisições que se fazem através do meio envolvente. É assim compreensível que elementos de uma mesma sociedade partilhem princípios diferentes, pois muito do que somos depende dos valores que nos incutiram e da educação que recebemos. Se, no que se refere à educação, a escola poderá tornar-nos algo uniformes, já no que diz respeito aos valores, são a família e o meio social os principais condicionadores do comportamento de cada um. Claro que, através da cultura individualmente adquirida, poderemos alterar as nossas matrizes de base, mas será sempre através desse “écran” de base que o faremos.


O espaço geográfico que deu origem a Portugal foi, desde sempre, receptáculo de gentes vindas do exterior que por aqui ficavam porque gostavam do local, ou por impossibilidade de seguir viagem a partir deste “fim do Mundo”. Na verdade, é ao Cabo da Roca que se deveria chamar Finisterra, e não ao cabo galego que leva esse nome! Desde os povos do Centro e do Norte da Europa, aos povos da Anatólia e do Norte de África, passando por muitos povos centro-europeus, a Península (e em particular Portugal) foi terra de chegada e de acolhimento. Recordo a cantilena da escola primária sobre os povos invasores celtas, cartagineses e romanos, depois suevos, godos e alanos, terminando em mouros e árabes. Estes últimos ficaram pela Península enquanto reino independente, até ao final do século XV. Em Portugal, as pequenas taifas subsistiram até aos séculos XIII/XIV, sendo depois maioritariamente absorvidos.

Somos por isso o somatório oeste de inúmeros povos do norte, do sul e do este, o produto de variadas culturas e de maneiras de ser, que nos moldaram e nos tornaram estes mestiços, estes seres “do Mundo” que desde cedo somos. Talvez nesta amálgama radique a origem do nosso espírito de aventura, desta nossa inquietação urgente de sair dos limites do nosso próprio território. Talvez tenha sido esse espírito que, a partir do século XV, nos impeliu a ir em busca de “novos mundos”. Porque o país é pequeno e com pouca gente, muitos saíram sós e por lá (onde quer que isso seja) constituíram família e tiveram filhos, fundindo-se aos autóctones desses locais exóticos. Daí a divertida expressão brasileira de que “Deus criou o Mundo e o português criou a mulata”. Tudo isto contribuiu para uma forte integração nas sociedades para onde migramos e ao estabelecimento de ligações preferenciais entre esses povos e nós próprios, reflectidas tanto nas palavras, saberes e sabores que por esse Mundo deixámos, como nas palavras, saberes e sabores que desse mesmo Mundo trouxemos e incorporámos: se há um português em toda a parte, há também um pouco de toda a parte neste nosso Portugal.


Se muitos “por lá” ficavam, “por cá” eram substituídos por cativos e escravos, vindos das feitorias e posições por nós ocupadas, do Norte ao Sul de África, da Amazónia ao Rio da Prata, da Índia a Java e ao Japão. Recordemos simbolicamente um só, Jau, o escravo javanês de Luís de Camões. A importação mais maciça foi, como é sabido, de África. Estima-se que só na Lisboa do século XVII, os escravos, maioritariamente negros e mouros constituíssem cerca de 10 % da população! Com a abolição da escravatura, primeiro em Portugal (ainda no tempo do Marquês de Pombal), depois em todo o Império, terminou este fluxo de migração forçada. Não há notícia de grandes chacinas nem de grandes retornos a África pelo que, que se saiba, a esmagadora maioria dos negros e mouros que por cá viviam tenha sido incorporada no nosso sangue e na nossa alma: circula-nos nas veias! Eu diria que, sendo nós já mestiços de origem, criamos por nossa vez mulatos cá e em todo o mundo. Famílias com elementos de diferentes etnias é algo bastante comum entre nós, o mesmo acontecendo nos países para onde emigrámos.

Seremos talvez um dos povos europeus com maior mistura étnica. Seria muito interessante e até muito apaziguador, se se fizessem em Portugal maciçamente testes de ADN mitocondrial, esses testes que nos dizem que raízes étnicas nos circulam nas veias! Se o racismo tivesse origem étnica, correríamos o risco de ter de nos discriminar a nós próprios, mas o racismo não tem origem étnica: é antes uma aquisição social. Na verdade, dado que a esmagadora maioria dos escravos, durante a colonização e exploração da Américas, eram negros africanos, tornou-se a cor da pele uma forma de distinção social. O fim da escravatura foi uma luta muito dura, particularmente contra os grandes senhores das terras (do cultivo massificado do algodão, do café e de outros produtos de grande consumo europeu). Mesmo depois do fim da escravatura, esses “grandes senhores” tentaram manter o domínio económico e social sobre os antigos escravos. Para isso, inventaram uma teoria de “supremacia branca” (depois refinada pelos nazis) para prolongar e justificar a exploração económica dos negros. É essa a verdadeira origem do racismo que ainda hoje vivemos, embora nenhuma teoria supremacista tenha resistido à mais elementar prova científica.

Contudo, não creio que seja correcto classificar qualquer país como racista, a não ser aqueles em que a segregação racial é (ou foi) instituída e legal, como era a África do Sul do tempo do apartheid ou a segregação racial nos Estados Unidos da América até (essencialmente) ao tempo de John Kennedy, já nos anos 60. Creio também ser igualmente incorrecto dizer-se que não há racismo em Portugal. Há! Não é uma doutrina de Estado, nem sequer uma doutrina muito disseminada, mas as manifestações racistas e xenófobas individuais ou de grupo são uma realidade. Naturalmente que uma acção conduz a uma reacção e seria também incorrecto dizer-se que o racismo é coisa só de brancos (e brancos, convenhamos que nós, portugueses, somos pouco)! O “mecanismo” da segregação pela cor da pele só acabará quando acabar a sobreexploração do trabalho, como aconteceu relativamente a nós, portugueses, em França e na Alemanha do século XX. Não nos esqueçamos também do exemplo da luta das sufragistas desde há cerca de 100 anos, maioritariamente da classe média e brancas, que só acederam ao mesmo estatuto dos homens quando passaram a ganhar o mesmo salário que eles. E mesmo essa, ainda é uma equalização em curso… Embora pense que a luta contra o racismo e a xenofobia venha a ser mais rápida, ainda há um longo caminho pela frente. É esse caminho que, segundo penso, foi agora iniciado.

Fernando Pinto

Arquiteto

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