“Os meios no combate ao narcotráfico são sempre escassos”

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Henrique Gouveia e Melo é Chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional desde dezembro de 2021, data em que foi promovido a almirante. Antes, assumiu o papel de liderança da ‘task force’ para a vacinação contra a covid-19 e, a partir daí, tem sido apontado como um dos candidatos às próximas presidenciais. Face à escalada do narcotráfico a Sul e da violência dos narcotraficantes, explicou o que está a acontecer nas águas do Algarve, bem como do papel da Marinha na proteção e desenvolvimento sustentável do país, a par de empresas que contribuem para uma economia azul

JORNAL do ALGARVE (JA) – Nos dois primeiros meses de 2023, as autoridades marítimas apreenderam 16,48 toneladas de estupefacientes, praticamente o mesmo número reportado em todo o ano de 2022. O que está na origem destes números?
Gouveia e Melo (GM)
– Até ao momento, 27 de março já foram apreendidas 22,89 toneladas de estupefacientes, ultrapassando o valor do ano transato, que se cifrou em cerca de 16 toneladas e meia. Este aumento pode resultar de um incremento do fluxo deste tipo de tráfico para Portugal, mas também de um reforço dos meios da Marinha e da Autoridade Marítima Nacional AMN, na costa do Algarve, bem como de uma mudança de tática por parte destas duas entidades, passando a atuar mais em águas internacionais.

JA – Quais são as rotas de tráfico que passam pelo Algarve e como atuam os grupos criminosos?
GM
– O fenómeno do tráfico de droga por via marítima no Sul do país já existe há muitos anos. No entanto, face a algumas mudanças legislativas do lado espanhol, o tráfico de haxixe desviou-se bastante para Portugal. Usa agora a zona Sul como zona de desembarque para o haxixe que é destinado à Europa, particularmente do Norte. Os narcotraficantes saem de Marrocos com destino ao Algarve, usando normalmente várias embarcações de alta velocidade. Algumas embarcações são transportadoras, levando os fardos de estupefacientes, outras têm funções logísticas, levando combustível e mantimentos e outras são usadas somente para dissuadir as autoridades, sendo conhecidas como “lebres”. Normalmente as embarcações transportadoras levam entre duas a três toneladas de droga.

JA – É a cocaína que circula em maior quantidade na região/país?
AGM
– Não possuímos dados que permitam responder a essa questão. No entanto, nos últimos anos, o estupefaciente que a Marinha e a AMN têm apreendido em maior quantidade é o haxixe.

JA – Estamos a falar de traficantes de que nacionalidades? Há ‘gangues’ portugueses a operar nas águas algarvias?
AGM
– Os elementos que têm sido detidos e identificados nas diversas ações da Marinha e da AMN, muitas das vezes com a preciosa colaboração da Força Aérea e da Polícia Judiciária (PJ), são na sua maioria espanhóis e marroquinos. No entanto, também há portugueses. Este narcotráfico é realizado por redes marroquinas e espanholas já implementadas há algum tempo, mas que estão agora a envolver portugueses, gerando um fenómeno de desestruturação junto das áreas mais vulneráveis da sociedade e até, eventualmente, com o perigo de desestruturar as próprias autoridades.

JA – Portugal é uma das portas de entrada da cocaína na Europa por via marítima. O que está a ser feito, atualmente, para mudar essa realidade?
AGM
– A maioria da cocaína que entra na Europa por via marítima vem da América do Sul. Por parte da Marinha e da AMN, estamos permanentemente no mar com diversos meios e trabalhamos em estreita colaboração com a PJ, que é a polícia que tem responsabilidades em matéria de narcotráfico.

JA – Recentemente, dois elementos da Polícia Marítima (PM) ficaram feridos depois da embarcação em que seguiam ter sido abalroada por outra ao largo da costa algarvia. Até onde pode ir a escalada de violência contra as forças de segurança no terreno?
AGM
– Nos últimos meses temos assistido a um aumento da escalada de violência por parte dos traficantes, que culminou com o abalroamento propositado de uma embarcação da Polícia Marítima (PM). Os quatro elementos da PM tinham apreendido uma embarcação de alta velocidade suspeita de narcotráfico e detido os seus três tripulantes. A embarcação agressora abalroou com tal violência a embarcação da PM, que passou por cima desta de um bordo ao outro, danificando-a e colocando em risco a vida dos agentes que, felizmente, escaparam com ferimentos. Mesmo assim, com dois elementos feridos e outros dois caídos na água, a PM reagiu e deteve os três suspeitos, dando o alerta geral. Não tendo sucesso, a embarcação agressora colocou-se posteriormente em fuga. Condenamos veemente esta ação violenta e propositada, mas mantemo-nos firmes e continuamos a combater esse tráfico com ações bem planeadas, coordenadas e dirigidas, onde os militares da Marinha, nomeadamente os Fuzileiros, e os elementos da PM têm tido uma ação muito eficaz.

JA – Os meios na região são suficientes para ganhar “a guerra” contra o narcotráfico?
AGM
– Como em qualquer organização, consideramos que os meios são sempre escassos. Como Chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional compete-me gerir da melhor forma os recursos materiais e humanos que a Marinha e a AMN têm ao dispor. Nas ações de combate ao narcotráfico contamos, muitas das vezes, com a colaboração da Força Aérea e da PJ, numa profícua complementaridade de meios e competências. Estas ações conjuntas têm potencializado os resultados alcançados.

JA – Falta legislação para proibir a construção/posse das embarcações ditas “rápidas”?
AGM
– Esta é matéria legislativa que está fora do meu âmbito.

JA – De que forma se pode minimizar a ocorrência de casos de corrupção das autoridades perante o aumento do narcotráfico no Sul?
AGM
– Neste momento, é fundamental que as redes marroquinas e espanholas, já existentes, não se implementem ou desenvolvam em Portugal, para que, tal como já referi, não originem um fenómeno de desestruturação junto das áreas mais vulneráveis da sociedade e das próprias autoridades. Para alcançar tal desiderato é estar atento ao fenómeno e combater com todos os instrumentos do Estado disponíveis, de forma proativa e reativa.

JA – Relativamente ao caso de roubo de uma embarcação no Rio Guadiana, considera que pode ter estado em causa um caso de corrupção?
AGM
– Não tenho conhecimento dos factos dessa ocorrência que me permitam responder à sua pergunta.

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JA – As embarcações deixadas à deriva com fardos de droga são, como se diz, uma manobra de distração destes grupos criminosos para que carregamentos de maior valor possam ocorrer noutros pontos?
AGM
– Normalmente, quando as embarcações de alta velocidade são deixadas à deriva com material estupefaciente é sinal de que abandonaram a embarcação à pressa, não tendo tempo para fazer o transbordo para outra embarcação. Outras vezes, quando os traficantes estão em risco, atiram a droga para o mar e fogem numa ou outra embarcação para Marrocos ou para o estreito de Gibraltar. No entanto, temos apreendido diversas embarcações, que são retidas por nós e usadas, por ordem judicial, para combate a este tráfico.

JA – Muitos defendem que as potencialidades do mar não estão a ser exploradas na região como deveriam. Tal como já teve oportunidade de dizer, em que sentido “o mar e os oceanos são a última oportunidade estratégica deste país”?
AGM
– O nosso espaço marítimo sob jurisdição nacional é uma extensa área, onde se encontram diversas riquezas que constituem um ativo estratégico de enorme importância para o país. Estas riquezas devem ser exploradas de forma sustentável, criando conhecimento e riqueza. Se não formos nós a fazê-lo outros virão por nós e perdemos a oportunidade de gerar conhecimento e riqueza para as próximas gerações de portugueses. Os portugueses são tão bons como qualquer outro povo e não faltam casos de sucesso por esse mundo fora. A Marinha trabalha todos os dias para proteger os interesses de Portugal no e através do Mar. Esta está virada para a tecnologia e inovação, constituindo-se como um catalisador para a academia e indústria nacional e contribuindo para o desenvolvimento da economia azul portuguesa. Só com a existência de diversas empresas nacionais competitivas e focadas na economia azul será possível a Portugal explorar as riquezas existentes no seu extenso espaço marítimo de forma sustentável, gerando conhecimento, empregos e riqueza para o país.

JA – Faria sentido uma extensão da Escola Naval no Algarve?
AGM
– Historicamente a Marinha está muito ligada ao Algarve. Embora a afamada “Escola de Sagres” seja mítica, pois nunca existiu nesse local uma escola na verdadeira aceção da palavra, foi em Lagos que se desenvolveu, de forma informal, os conhecimentos relativos à navegação, marinharia e construção naval, uma vez que foi nesse local que muitos marinheiros de diversas nacionalidades aguardavam a acalmia da nortada, nas suas viagens do Mediterrâneo para o Norte da Europa, trocando experiências e conhecimentos náuticos. Essa troca de conhecimentos, de certa forma, ajudou a impulsionar os descobrimentos portugueses, sendo a partir da Baía de Lagos que saíram as primeiras viagens dos descobrimentos. Atualmente, estamos focados em fazer uma gestão criteriosa dos recursos que possuímos, não sendo viável uma extensão da Escola Naval no Algarve.

JA – No âmbito do combate ao tráfico de droga, qual o papel que a imprensa regional deve assumir?
AGM
– A imprensa tem um papel fundamental na democracia, que é informar de forma isenta a sociedade sobre diversos acontecimentos, sejam eles políticos, sociais, económicos, científicos ou culturais. No caso do Algarve existe uma imprensa regional muito diversificada e ativa, de que o Jornal do Algarve é um bom exemplo. Cumpre à imprensa regional do Algarve informar o cidadão sobre o fenómeno do narcotráfico e as medidas necessárias para o reprimir, mantendo-o permanentemente atualizado. A imprensa algarvia tem feito um bom trabalho, dando conhecimento aos seus leitores não só das inúmeras ações da Marinha e da AMN no combate ao narcotráfico, como das restantes atuações, de que as ações de resgate e busca e salvamento são um bom exemplo.

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