Os novos pobres de rostos invisíveis

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Ainda mal se apanhavam os estilhaços causados pela pandemia, já outra guerra rebentava na Europa. Dispararam os juros, o preço dos alimentos, combustíveis e o medo entre aqueles que todos os dias se digladiam para garantir o sustento dos filhos. Seja porque perderam o trabalho, a casa ou o rumo, o Centro de Acolhimento de Emergência Social (CAES), localizado em Braciais (Faro), é uma das respostas sociais da região que dá esperança e dignidade a todos aqueles que perderam (quase) tudo e àqueles que agora são os ‘novos pobres’. O JA falou com o presidente e a vice-presidente do MAPS, voluntários e dois dos responsáveis por uma casa que é um “sonho antigo”. Apesar dos esforços constantes, acreditam que “o pior está para vir” e que é urgente mudar a forma de encarar a pobreza, pois ela torna as pessoas invisíveis

Atualmente, são 25 os utentes do CAES. Há bebés, crianças, jovens, adultos e pessoas já perto da idade da reforma. Por ali passam pessoas de todas as partes do mundo e de todas as culturas. Todos os utentes são diferentes e carregam às costas uma histórica única que lhes marcou o coração, a alma e, em alguns casos, a pele. No primeiro mês do Centro, que abriu portas em setembro deste ano, passaram 36 pessoas que precisavam de um teto, de cuidado e de um lugar para recomeçar. A missão passa por acolher pessoas em situação desfavorecida ou vulnerável, com vista à sua reintegração na sociedade.
Teresa (nome fictício), é uma das utentes do CAES. Abriu-nos o coração para contar a sua história. Está na casa dos 40, é brasileira e está em Braciais juntamente com os seus dois filhos menores. É precisamente “por eles” que ali está. Foi abandonada pelo pai do filho mais velho e veio para Portugal, em 2018, na esperança de encontrar “uma vida melhor”. Depois das dificuldades com a documentação, trabalhou como cuidadora, onde acabou por deixar de ser paga, fez serviço de limpeza num hotel que a dispensou no final da temporada, passou por “muitos” quartos que partilhava com desconhecidos, sentiu “grandes dificuldades” durante a pandemia, voltou a engravidar, ficou com uma dívida e chegou a ser alvo de ameaças e intimidações físicas.
“Por ser mulher, por estar sozinha e com dois filhos, as pessoas não acreditam que possa pagar um arrendamento e que possa trabalhar. Acumulamos sentimentos, o desespero chega, vemos os ‘amigos’ a afastarem-se porque podemos vir a precisar de ajuda e ninguém se quer envolver quando tudo piora”, recorda, emocionada. Nessa fase turbulenta, confessa ao JA que tinha uma ideia bem clara: não ia deixar os filhos viverem na rua, mesmo que isso implicasse separar-se deles. Hoje, graças ao apoio do CAES e da Segurança Social, tem “uma nova vida”. Sente-se “segura” e “tranquila” num sítio onde a tratam “bem” e respira de alívio pelos filhos estarem na escola.
Com um brilho nos olhos, diz-nos que, para o futuro, pede que os filhos “estejam bem”, que sejam “pessoas de bem” e que tenham “uma vida profissional para viverem bem”. Admite que nunca foi “mulher de grandes sonhos” e que só precisa “do básico”. O importante “são os filhos”. Com “a ajuda do pessoal” do Movimento de Apoio à Problemática da Sida (MAPS), acredita que “tudo vai correr bem” e que vai conseguir encontrar trabalho e ter o seu espaço “um dia”.

O CAES tem 17 quartos, instalações que são tudo para quem chega sem nada

“O pior está para vir”
Fábio Simão, presidente do MAPS, afirma que na associação já sentem “os efeitos da escalada de preços” e acredita que “o pior está para vir”: “Não sabemos ao certo a dimensão que a crise vai gerar e da falta de capacidade que as pessoas vão ter, para não dizer que as medidas que estão a ser tomadas são manifestamente insuficientes” classifica. Ainda que se tenha verificado um ‘boom’ no consumismo no pós-pandemia, “muitas pessoas não se conseguiram reerguer”, o que torna o cenário ainda mais negro. No MAPS, a quantidade de donativos que chegam “tem diminuído” e a capacidade de apoio “está a começar a esgotar”, descreve.
O advogado considera que “é inadmissível, numa altura em que toda a gente se está a ressentir, que as empresas estejam a ter os maiores lucros de sempre. O que se está a passar?”, questiona. Na sua visão, “vamos ter uma das maiores crises a rebentar-nos à porta e quem vai ser mais prejudicado são os mesmos de sempre. Vamos voltar à situação em que as pessoas perdem as casas… Tudo aquilo que conquistámos desde a última crise vai desaparecer. Estamos a destruir a sociedade da forma com ela existe”, alerta.
Segundo o responsável, “o Algarve, o País e o Mundo precisam de mais respostas sociais” e justifica: “As respostas que temos são maravilhosas em tempos normais. O nosso trabalho é inserir pessoas na sociedade. Mas como é que insiro uma mãe com dois filhos que não consegue uma creche e, logo, não pode procurar emprego? E no dia que conseguir ter trabalho vai ganhar o ordenado mínimo? Como é que esta pessoa paga uma casa aos preços absurdos em que estão os arrendamentos? Não há respostas para o arrendamento. Temos todos de pensar nisto”, agudiza.

Região “abandonada”
Elsa Cardoso, vice-presidente do MAPS, corrobora a tese de Fábio Simão e sustenta que “o pior vai chegar porque o Algarve é uma das regiões mais abandonadas a nível de apoios estatais. A verdade é que quando são pensadas as políticas sociais ficamos de fora das fontes de financiamento (…) Hoje em dia é preciso muito esforço para ter uma normalidade na vida”, constata. “Para muitas pessoas, é uma escolha constante entre pagar a luz, o gás, a comida, os medicamentos… E a pobreza é hoje muito diferente do que era há 30 ou 40 anos. Antigamente a pobreza via-se nas ruas. Hoje a pobreza é uma realidade invisível. Camuflada, por vezes. Não aceitamos a pobreza como os nossos avós ou bisavós também…”, deplora.
Em todos os projetos do MAPS trabalha-se para “dar normalidade e dignidade às pessoas” e é aí que o Movimento marca a diferença. O CAES é um projeto inovador e o primeiro do País, em termos de dimensões e características. O espaço, cedido pela Direção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve, dispõe de 17 quartos, refeitório, cozinha, lavandaria, sala comum, gabinetes de enfermagem e de atendimento personalizado, rodeados por um espaço verde. O período máximo de permanência é de seis meses.
Em visita ao CAES, testemunhámos um ambiente seguro, acolhedor, sereno e salpicado pelas cores alegres das divisões, que se tornam tudo para quem chegou sem nada. Fábio Simão confessa ao JA que sente “tristeza” quando lhe dizem o CAES “parece um hotel” e aprofunda: “Entendo a ideia de elogiarem as instalações, mas parece que as pessoas o dizem como se tudo isto fosse um desperdício para quem aqui chega”. Por isso, é incisivo, “(…) para as coisas mudarem, é preciso mudar mentalidades e percebermos que estas pessoas são pessoas dignas. Não são mendigos a quem damos uma esmola (…) A miséria não é um conceito, é um sentimento. É urgente construir um mundo diferente, mais preocupado e educar as pessoas. Cabe a todos conseguirmos motivar as pessoas e desmistificar a ideia de não têm casa porque são uns malandros que não querem trabalhar”, vinca.
O presidente do MAPS deixa um desafio: “Refletir sobre quantas moedas já demos na rua versus quantas vezes parámos para perguntar como é que estava a pessoa ou como se chamava”. A pobreza torna as pessoas “invisíveis” e por isso, aos olhos de Fábio Simão “dar uma moeda não passa de um ato egoísta para nos sentirmos bem em consciência. Não estamos a ajudar a pessoa assim”, afirma. Em alternativa, como vários exemplos a que tem assistido em mais de uma década de dedicação ao MAPS e às pessoas, o responsável sugere que possamos “despender um pouco daquilo que somos em prol do outro, que está a passar um momento difícil”. Para Fábio Simão “isso sim, é dar dignidade às pessoas e mudar o mundo”. Por outro lado, “fortalecer a rede e a área social para garantir que todos têm direito à habitação, a uma vida digna e a verem a sua individualidade protegida”, é também imperativo.

“É difícil chegar a um número exato de pessoas em situação de sem-abrigo”
Fábio Simão estima em cerca de 660 pessoas em situação de sem-abrigo na região. Contudo, explica que os números “só se tornam reais a partir do final de novembro porque o Algarve é uma zona de muita passagem e temos de deixar passar o verão para termos a ‘fotografia’ das pessoas que ficaram”. Neste momento, o MAPS está em articulação com todos os Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) para fecharem as listagens e fazerem a atualização anual, ainda que seja “(…) difícil chegar a um número exato de pessoas em situação de sem-abrigo”.
Este constrangimento é justificado pelo facto de uma pessoa em situação de sem-abrigo poder ser sinalizada mais do que uma vez, caso se mova de região para região, “o que faz com que os números ‘oficiais’ não sejam reais”, elucida o presidente do MAPS. Nesse sentido, adianta que as entidades regionais aguardam que a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo “componha uma base de dados partilhada para se seja possível rastrear a circulação destas pessoas”.
De acordo com a última estimativa do projeto LEGOS, que procura promover a integração de cidadãos em situação de sem-abrigo no Algarve, contabilizavam-se, em Faro, cerca de 60 pessoas que se encontram efetivamente a viver na rua. Portimão, Faro, Loulé e Albufeira, por estarem ligados ao trabalho sazonal, são os quatro concelhos com mais picos e maior número de sinalizações, segundo Fábio Simão.

Combater o estigma
Usar a expressão “sem-abrigo” é, nas palavras de Fábio Simão, “a coisa mais errada que podemos fazer”. Eis a explicação: “Ninguém é sem-abrigo. As pessoas estão em situação de sem-abrigo e é importante fazermos essa distinção porque uma das coisas que fazemos é combater o estigma e demonstrar que uma pessoa em situação de sem-abrigo é uma pessoa como nós. Teve um infortúnio. Houve um acontecimento que levou àquela situação. Dizer que uma pessoa em situação de sem-abrigo não quer trabalhar ou que é um preguiçoso não está certo”, sublinha. “Quem dá trabalho a uma pessoa que não toma banho há dois meses, ou que não tem roupa em condições, ou um corte de cabelo? É um dever cívico aproximar estas pessoas da comunidade. Tem de haver empatia. Não porque um dia podemos ser nós nessa situação, mas porque ninguém merece estar nessa situação”, enaltece. Para Elsa Cardoso, a maior lição que tem tirado do seu trabalho como voluntária é “estar no mundo com mais humildade e empatia”, acrescenta.

“As pessoas não querem ser escravizadas”
O CAES e outras respostas habitacionais de emergência da região recebem pessoas que trabalharam nas estufas, vindas do Alentejo, e que são descartadas no final da temporada; indivíduos com problemas de adições; pessoas que foram despejadas; pessoas que perderam o emprego depois do verão; vítimas de violência doméstica, pessoas da classe média que perderam tudo, pessoas que deram ao mundo para ali chegarem, como é o caso de um grupo de jovens timorenses que chegou recentemente ao CAES “sem sapatos e com roupa molhada dentro das mochilas”.
Fazendo uma correlação entre a necessidade de inserir estas pessoas no mercado de trabalho e a falta de mão de obra no setor do turismo, Fábio Simão argumenta: “Fala-se muito da questão da falta de mão de obra no turismo, mas o que acontece é que as pessoas não querem ser escravizadas durante três e depois serem dispensadas. É normal que quem viva cá e quem passa todos os anos por isso, chegue a um certo ponto e diga que não. E mesmo os que não são de cá. Está tudo mais caro e as pessoas preferem encontrar um trabalho que lhes dê segurança e continuidade. O algarvio neste momento não é preguiçoso, é esperto”, defende Fábio Simão.

Respostas sociais na região
Atualmente, o Algarve tem 134 camas entre apartamentos partilhados e centro de acolhimento espalhados pelos concelhos de Albufeira, Faro, Lagos, Loulé, Portimão, Tavira e Vila Real de Santo António, segundo dados do MAPS. Daqui a um mês, tal como como avança Fábio Simão, farão parte deste número mais 18 camas que vão estar disponíveis, em Lagos, no novo centro de acolhimento temporário destinado a requerentes de proteção internacional, como é o caso mais recente dos refugiados da guerra da Ucrânia, mas também a pessoas em situação de sem-abrigo, vítimas de violência e outras situações de emergência social.

Região com 25% dos habitantes em risco de pobreza
Segundo o Observatório Nacional da Luta Contra a Pobreza, a taxa de risco de pobreza ou exclusão social no Algarve, em 2021, era de 25,4% – valor superior ao registado em 2020 (23,5%) e a segunda maior taxa nacional, depois da Região Norte (25,8%). Face a 2021, a taxa de privação material e social severa subiu na região de 6,1% para 9,6% em 2022.

Banco Alimentar Contra a Fome

Pedidos de ajuda aumentam semana após semana no Banco Alimentar

O presidente do Banco Alimentar Contra a Fome do Algarve, Nuno Cabrita, disse ao JA que sente desde setembro um “aumento ligeiro semana após semana” relativamente aos pedidos de ajuda à instituição, “mas que foi travado agora por causa desta distribuição de apoios que o Governo entendeu distribuir à comunidade e à população”. Por outro lado, a instituição também está a sofrer com a inflação, que é consequência da invasão da Rússia à Ucrânia, relativamente aos combustíveis. “Nós tivemos um aumento em dois anos de 300% ao nível dos combustíveis e de 150% nos transportes. Isto é gigante a nível de impacto no orçamento de uma instituição como o Banco Alimentar”, explica. Esse aumento nos combustíveis e nos transportes é um problema atual para a instituição “porque sem este apoio nós obrigatoriamente temos de reduzir os cabazes, porque temos menos alimentos. Mas temos de fazer um esforço para conseguir manter o nosso trabalho, apesar destes aumentos exponenciais”.
Desde o início da guerra, os refugiados que chegaram a Portugal nas primeiras semanas causaram algum impacto, mas atualmente “começa-se a sentir um alívio nessa parte, pois as pessoas começam a ficar integradas na comunidade, a ter trabalho e por isso tem havido” uma redução” no número de pedidos de ajuda. Já em relação ao resto da comunidade, “os valores baixaram no início do ano por causa da questão da empregabilidade da região”.
“Sentimos sempre quando é que as coisas estão a piorar quando somos contactados diretamente pelas pessoas por telefone, e-mail ou redes sociais, a pedir ajuda. Depois encaminhamos para as instituições e para a Rede de Emergência Alimentar que fazem o apoio e o seguimento”, explica ao JA.
Nos dias 26 e 27 de novembro, os supermercados serão novamente ‘invadidos’ pela campanha do Banco Alimentar Contra a Fome. “Estamos a pensar que mesmo com a crise inflacionista, nomeadamente ao nível dos preços dos produtos alimentares, possa haver um impacto positivo nesta campanha para que nós possamos continuar a trabalhar”, conclui.
G.D.

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