Quando o JA escrevia nas entrelinhas

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Antes da Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, para o JORNAL do ALGARVE sair para as bancas era necessário que os seus textos passassem antes pelo conhecido "lápis azul" da censura do regime da ditadura, tal como acontecia em toda a comunicação social portuguesa. Ao mesmo tempo, alguns dos colaboradores do JA já eram conhecidos pela PIDE e tinham de usar pseudónimos. Quase 50 anos depois do Dia da Liberdade, o JA recorda o passado que não quer que regresse

Os textos do JORNAL do ALGARVE tinham de passar obrigatoriamente pela censura prévia, na Comissão Distrital de Censura, que naquela época estava sediada em Faro. Os textos eram examinados e podiam ser carimbados como “Não Autorizado”, “Autorizado com Cortes” e “Visado”, quando podia ser publicado.

Escrever nas entrelinhas era uma hipótese, quando havia o objetivo de transmitir uma certa mensagem. Por outro lado, outra solução que alguns colaboradores do JA utilizaram foi a criação de pseudónimos, uma vez que a PIDE já os tinha sinalizado.

Recorrendo ao arquivo do JORNAL do ALGARVE, recordamos alguns dos textos que forem recusados pela Comissão Distrital de Censura.

Torquato da Luz, na sua rúbrica “Tempo de Comentário”, levou com uma cruz vermelha no seu texto que demonstrava aquilo que “os algarvios desejam” com a tomada de posse do novo governador civil.

“Que gostariam os algarvios de ouvir da boca do novo chefe do distrito? Estas são as perguntas (além de outras) que, nestes dias, vão afluir, certamente, com grande frequência, ao espírito dos nossos comprovincianos empenhados no interesse público. E, se não há justificação para grandes e desmedidos entusiasmos, é justo, no entanto, que a espectativa se avolume e se crie a esperança de que qualquer coisa de novo vai acontecer”, escreveu.

Ainda antes de desejar a reestruturação do programa de desenvolvimento turístico, a aceleração de todas as iniciativas para o progresso regional, o estudo de uma solução para a ligação ferroviária entre o Algarve e Lisboa, uma solução para o então problema da barra do Guadiana e a renovação dos quadros dirigentes das Câmaras Municipais, Torquato da Luz continuava a questionar.

“De novo, o que? Se nos é permitido fazermo-nos eco dos desejos dos algarvios a quem este jornal particularmente tem servido, ao longo de mais de uma dezena de anos, com especial isenção e independência (numa exemplar recusa a tutela que não sejam aquelas a que forçadamente o obrigam), diremos que os nossos comprovincianos querem: (…)”, escreveu antes de listar os desejos.

A terminar, o colaborador do JA escrevia ainda que “faltará dizer muitas outras coisas, porventura mais importantes até, mas estas são as que nos vêm à ideia em primeiro lugar”.

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As opiniões sobre algumas obras literárias foram também censuradas do JORNAL do ALGARVE, como foi o caso do livro “A noite e a madrugada” ou “As sete partidas do Mundo”, de Fernando Namora.

Até uma carta ao diretor acabou censurada, onde um leitor considerava o inquérito “Ensino – Tempo de inquérito no Algarve” alvo de falta de liberdade.

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“É uma pena matar assim uma iniciativa tão interessante e que o próprio Governo – dos autênticos governantes da categoria do Prof. Marcelo Caetano – são os primeiros a apoiar incondicionalmente. Felizmente que sabemos ler o que o Governo escreve”, disse Jorge Moreira.

Outro texto assinado por R. P. foi censurado, uma vez que referia que os algarvios eram “desprezados dos grandes melhoramentos nacionais e das mais importantes infra-estruturas”.

A primeira página depois da revolução

Depois da revolução, a primeira edição do JORNAL do ALGARVE que usufruiu a totalidade da liberdade de expressão saiu para as ruas a 4 de maio de 1974.

A primeira página anunciava o nascimento de um português “que é preciso defender”, chamado de Liberdade, que é destacada em letras garrafais.

“Uma revolta militar deitou por terra o governo de Marcello Caetano e o regime que dominava o País desde 1926. Uma Junta de Salvação Nacional, presidida pelo general António Spinolla dirige a nação até que assuma funções um Presidente da República escolhido entre os seus membros. Isto no início de um longo processo em que se vai tentar restituir ao País uma feição democrática de que ele andava involuntariamente arredio”, contava o JA, através de uma nota de redação.

Esta edição histórica incluía ainda, na integra, o Programa do Movimento das Forças Armadas, onde eram explicadas as medidas que tinham sido tomadas como a libertação de presos políticos, a supressão da censura, o reaparecimento dos partidos políticos e o regresso de exilados.

Torquato da Luz recordava ainda José Barão, o fundador do JORNAL do ALGARVE, que tinha falecido oito anos antes. “De entre todos os telefonemas, houve um, porém, que me deixou particularmente emocionado: foi o de D. Ana Barão, viúva do saudoso fundador deste jornal, o meu querido José Barão. Queria dar-me uma palavra de amizade. Chorava – e eu, também, não contive as lágrimas. De alegria – e de raiva. É que, presente embora no meu espírito desde as primeiras horas do Movimento, se me tornou mais instante, nessa altura, a lembrança de quantos, tendo lutado toda a vida conta o fascismo implantado pelo 28 de Maio neste País, não lhe assistiram ao derrube”, escreveu.

Um dos destaques da primeira página vai para o vilarrealense António Mateus da Silva, noticiando-se que tinha acabado de ser nomeado encarregado do Governo da Guiné.

O estado em que estava o país também era descrito, considerado atrasado “sob vários pontos de vista, que nos fora imposto pelo regime tacanho e fascista que nos governou e que se tornava impopular à medida que os anos passavam”.

“Marcello depois de Salazar foi apenas a continuidade do insuportável, foi o extravasar da taça, foi a própria divisão surgida no seio do sistema. Foi o princípio do fim”, pode ler-se.

A liberdade, recentemente conquistada, tinha de continuar a ser defendida, uma vez que “tubarões reacionários e os seus agentes (DGS/PIDE, Legião, ANP/UN, e outros) espreitam a oportunidade de subverter as generosas manifestações para causarem incidentes e restabelecerem a desconfiança” e “as próprias aglomerações descontroladas encerram um potencial susceptível de degenerar”.

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