LIBERDADE SIM, mas não abusem, para que não prescreva, o Estado de Direito que ainda somos
No domingo passado, voltei à Praça da República, em Loulé, onde há dezenas de anos, ali me concentro, para assistir às cerimónias evocativas do 25 de Abril de 1974, e num instante já se passaram 47 anos. 47 anos, que comprei um quadro de Che Guevara…
Desta vez a cerimónia mantinham a mesma força e entusiasmo que nos sai de dentro de um peito cansado, dorido, às vezes tornado saco de boxe, e de onde fazemos soltar de bem de dentro, a Grândola Vila Morena, a canção do amor e da liberdade.
Desta vez, nem se fizeram ouvir as chamadas vozes pinga amor, dando voz a Zeca Afonso, e pouca gente veio à rua, porque sabiam que a banda não iria passar, trocada, por razões pandémicas, pelas colunas a partir do interior do edifício do Município Louletano.
Claro que tocado assim, só música, deixando de fora a letra, quando ela é de arrepiar, Grândola Vila Morena não é a mesma coisa.
Após o hastear das bandeiras, ao som do Hino Nacional, seguiu-se o desfile em continência dos Bombeiros Municipais de Loulé, que antes, o Presidente da Câmara Municipal de Loulé, Dr. Vítor Aleixo, já tinha passado em revista.
Seguiu-se depois uma sessão solene, muito restrita pelas condicionantes da pandemia, que contou com uma convidada de Honra, a escritora Lídia Jorge, prestigiada figura e Membro do Conselho de Estado, que na sua maravilhosa e emotiva intervenção evocou o esplendor de Abril, Liberdade e dos Capitães de Abril.
Ainda que tivéssemos sido convidados pelo Senhor Presidente da Câmara abdicámos do convite, pois tínhamos outros compromissos, que na nossa idade não era fácil desfazer.
Sentimos que num repente falta uma carta no baralho da democracia, pois o 25 de Abril não pode continuar a ser uma canção, com o País a sentir os efeitos dos dramas que nos vão acontecendo, que já não são aqueles que moram no bornal da pandemia, mas os outros a jusante e montante, com os grandes e graves problemas da corrupção e os do medo, que algumas bazucas se transformem em enguias e possam deslizar pelas mãos, como deslizou o armamento de Tancos…
As últimas sondagens apontam para cenários antes impensáveis, configurando-se mesmo tamanha desilusão sobre o 25 de Abril, que a própria democracia aparece coberta por teias do desinteresse e pela falta de filosofia organizativa e selectiva dos seus quadros, onde raro se articula a experiência com a capacidade de não entrar pelos carreirismo, mas sim ao serviço ao País.
Esta é a madrugada que eu esperava…
As mesmas sondagens, também apontam o dedo aos partidos políticos, sobretudo aos mais tradicionais, afinal aqueles que ao longo de vários anos têm suportado com coragem, esforço e lealdade a democracia e que agora parecem mais preocupados, com as cedências que encorajam, a arte que mantém vivo o populismo e o seu perigoso crescimento. Afinal a liberdade não é irreversível…
Liberdade sim, mas não abusem, porque o 25 de Abril de 1974, é muito mais, que as amolecidas comemorações da data, quando rompermos pelas ruas vestidos com a melhor farpela domingueira e de cravo vermelho no bolsinho do casaco, em homenagem à tal madrugada limpa, como escreveu, Sophia de Mello Breyner Andresen.
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
A hora pede-nos para não nos deixarmos enrolar na onda e depois ficarmos a sangrar na areia, antes cantando Camões, e com a mesma voz com que adormecia os mares, dizermos a toda a gente, que apesar de todas as dúvidas, e das figurinhas, que nunca serão figuras, que não podemos vacilar, deixar que o vento nos cale: “…Cantando espalharei por toda a parte. / Se a tanto me ajudar o engenho e arte…”.”…Que eu canto o peito ilustre lusitano…
É este o canto que nos tem que guiar, e se hoje ainda muitos adormecem à sombra do trabalho dos outros, temos que pedir aos Deputados, que não tenham várias moradas, e que assumam o papel que lhes cabe na democracia e não apenas na democracia de cada um…
Claro que no Algarve temos o direito de condenar, todos aqueles que o tratam como gente de segunda, sem se aperceberem, quanto fizemos (o Algarve) por eles e por elas, o Algarve, nós e outros, agora mais débeis, mais gastos, e mais sensíveis a um gesto de amor e não de caridade, mas que passam por quem lhes deu o prato, a colher e a sopa, como se nada tivesse acontecido.
Uma das quadras de António Aleixo, menos vezes dada à estampa, é o mais forte sinal para o tempo passa e dirigida a essas pessoas, que nunca se cansam de fazer o ódio, e que ainda não perceberam, que a democracia que vai a passar por aqui, não foi trabalho deles, alguns apenas se limitaram a tirar fotoscópicas nas associações de estudantes…
Viva Liberdade, mas não abusem e como escreve António Aleixo:
Dos seus antepassados,
Ele tem retratos na sala
Mas da puta que o pariu
Nem tem retratos nem fala
Este REMATE CERTEIRO, assenta hoje, num eixo de contradições, entre as montanhas de palavras que vão sendo ditas, e de uma democracia tão fragilizada, que permite, que subam à tribuna da liberdade, na Assembleia da República, na chamada Casa da Democracia, vozes que não conferem a democracia, antes o ódio, a mesquinhez.
Mas o grave não é o que essas vozes disseram, em tons de cravos pretos, em tons de evocar Salgueiro Maia, e a fanfarrice dos cravos brancos ou em tons, que nos falam no «irreversível», quando nos dias que passam, é o povo que sente as suas dores, e os outros sentem os milhões que passam pelas suas contas bancárias.
E soltam-se ainda os caprichos, que deixaram de tratar por tu o povo, antes tratá-los como ignorantes, como são os milhões que entram na TAP, e o prejuízo mais recente fala num record e mostra os números, 1230 milhões de euros, e de joelhos e em agonia, como se estivesses num confessionário ou então, como o Egas Moniz, com a corda a pescoço, assim nos entregamos ao Novo Banco.
Por isso, também achei, mais poético, que frontal o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa, porque todos sentimos, que o 25 de Abril não pode continuar a ser uma canção, mas antes a revolta permanente, que não deve perguntar apenas aos jovens se sabem o que foi o 25 de Abril, antes, tornar a Assembleia da República menos cinzenta, mais competente, mais independente e libertadora.
De nada vale continuarmos a evocar o Movimento dos Capitães de Abril, quando em vez da liberdade e como um compressor passa mesmo em sentido contrário, a corrupção, a mentira, as desigualdades, um país a duas velocidades, onde tudo é cada vez mais complicado: levar uma vacina, preencher os censos, sobretudo os censos…onde tive que ligar para perceber um dos sinais que teria que inserir, e a voz de uma senhora depois da minha explicação, a dizer-me: isto é um cifrão. Um cifrão, minha senhora, perguntei. Minha senhora se isto é um cifrão, eu vou ali à casinha e já volto…
Não gostei dos discursos do 25 de Abril, esperava mais mesmo sabendo, que horas depois já tinham prescrito. Exigia mais. Mais verdade, mais consciência, mais civismo, mais educação, mais solidariedade, mais razão, mais saúde, em contraste com o constante verbo misericordioso como que nos tratam, quando desde sempre merecemos o pão.
Não gostei dos discursos do 25 de Abril e isto assusta-me, porque LIBERDADE SIM, mas não abusem, também da nossa paciência, e nem nos tratem como tolos e ignorantes, para que a memória não fique calcinada, a história não seja uma mentira e a corrupção, não seja uma nova pandemia, cujas decisões tornam cada vez mais débil o Estado de Direito.
E porque a liberdade que vai passando por aqui, é apenas para uns quantos, e vejo-os por dentro dos meus olhos e eles pensam que eu não sei, quem eles são, resolvi regressar ao passado, voltar a pegar nos novelos de lã e iniciar mais um tapete de arraiolos. Aliás, faz anos que não mexia nas lãs, nem nas agulhas. Para a semana explico, o desenho e as cores com que estou a pensar construir o tapete…
VIVA O 25 DE ABRIL
Neto Gomes