Retalhos do meu sentir: O Infante D. Henrique e a Bênção das Águas em ano de seca

Na Vila onde nasci, e que ao crescer se fez cidade, mesmo no centro da sua praça tem um obelisco, intercruzando o eixo do poder dos homens, este-oeste, com o eixo do poder divino, onde se encontram os largos outrora denominados de Bica e Forca, bem como o cemitério e a igreja, criando, por casualidade ou casuísmo, uma cruz no centro da planta de fundação, cujo coração é coroado com símbolos régios.


É, aliás, sobejamente interessante a localização a norte do cemitério de Vila Real de Santo António, que segundo o falecido arquiteto Walter Rossa, terá sido um dos primeiros na Europa mandado construir para o efeito que lhe é devido, uma vez que, para inúmeras outras tradições, de entre as quais o xamanismo, é o local onde os ancestrais têm lugar.


Recebi todos os ritos e rituais a que me propus na igreja de Nossa Senhora da Encarnação. Sei de cor os seus espaços, salas, arrumos, cheiros e memórias. Recordo os meus queridos e doces catequistas: o primeiro de todos, ainda sem idade- eu para ser catequizanda, ele para ser catequista- o meu amigo e vizinho P. Mário Sousa, que, testemunhando e mimetizando a sua vocação extemporânea, ainda me inspirou a erguer um altar no meu quarto de miúda e, de estola nos ombros, simular que ordenava umas missas lá em casa! Depois a vizinha Clara Sabino- mãe da minha grande amiga Carla-, a tia Manuela, a Tóto Centeno, a Luísa Peres, o Padre Ermínio, o amigo e professor Francisco Farinha, a Cidália e o Luís Filipe (que partiu demasiadamente cedo), e por fim a Rosário Anica. Recordo tudo e todos com carinho.

O programa na Rádio Guadiana “É preciso renascer”, com o Padre Manuel, o P. Ermínio e o Manuel Fernandes na técnica, e, durante algum tempo também, com o P. Zé Pedro e o P. Aniceto, aos domingos de manhã, antes da missa. Recordo ainda, com a mesma sensação de contemplação e meditação profundas, o quão gostava de ir ao final da tarde, já escura, sentar-me na última fileira de bancos- alguns feitos pelo meu falecido pai- ajoelhar-me e fechar os olhos. Com sorte, era presenteada com os ensaios do Pedro Monteiro, do Paulo Salvador ou do Paulo César. Alunos de órgão do Conservatório Regional Maria Campina, estudavam à vez no órgão da igreja, deleitando os comuns dos mortais, maioritariamente “nuestros hermanos” que àquelas horas por ali passavam, com compositores famosos que preenchiam os espaços normalmente inundados de silêncios.


E abria os olhos, e observava o modo como as minhas mãos- grandes o suficiente para a minha professora Liliana Mascarenhas ensinar, a mim e a todos os colegas, como identificar uma hipérbole- se tornavam pequeninas perante o retábulo de Nossa Senhora da Encarnação.


Da minha igreja para o mundo, passei a observar os áticos, corpos, entablamentos e embassamentos; as mesas de altar, sacrários, nichos, tronos e tribunas; a admirar as talhas, os dourados, as figuras, os azulejos…


O nosso Algarve é rico em Arte Sacra. Só Tavira tem mais de 20 igrejas. Como um dia li algures no Retábulos do Mundo Português do Francisco Lameira, da Promontoria Monográfica de História de Arte, os algarvios nunca se rogaram na hora de abrir os cordões à bolsa para ornamentar e dignificar o culto do divino. Algumas das nossas igrejas, reestruturadas dos estilos originais, receberam novos retábulos e restauros, após o terramoto de 1755, como a Sé de Silves, de 1266, ou a igreja matriz de São Tiago em Estômbar (Lagoa). Outras, tal como a Sé Catedral em Faro e a igreja de São Clemente em Loulé, após saques de corsários de Essex e outros que tais, erigidas sobre templos romanos e mesquitas muçulmanas, foram-se renovando entre os maneirismos e os manuelinos. Ainda outras, exibem azulejos barrocos, como a Igreja de São Lourenço em Almancil, dignos de ascetismo prolongado.


Mas, de todas elas, e em ano de escassez de água, talvez devamos sublinhar um pormenor de uma das mais antigas do nosso Algarve, a Ermida da N. Senhora da Guadalupe, datada do sec. XIV. É que esta ermida era o local onde o infante D. Henrique fazia as suas orações e foi erguida para pedir a bênção das éguas em anos de seca, pelo que, talvez seja altura (permitam-me os agnósticos) de regressarmos às peregrinações. Para além disso, façamos a nossa parte e cuidemos do privilégio que é ter água límpida a correr nas nossas casa.

Sara Gomes Brito

*Mestre em Literatura Comparada. Pós Graduada em Multiculturas e Gestão de Relações Interculturais

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