Será o Racismo a origem da Escravatura?

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Colaboradora. Designer.

Quando falamos de escravatura, quase inconscientemente lhe associamos o racismo, e em particular o racismo anti-negro.

Esta imagem deve-se ao imenso tráfico de escravos africanos que os povos europeus (incluindo os portugueses) efectuaram para a Europa e para as Américas, entre os séculos XV e XVIII. Contudo, a escravatura e o racismo nem sempre andaram associados, perdendo-se a origem da escravatura nas dobras do tempo. Muitas vezes a escravatura ocorria por dívidas sendo, nesse caso, escravo e senhor, do mesmo grupo étnico e social. A escravatura era também o destino normal dos perdedores de uma guerra e, verdade seja dita, muitas foram as guerras em que o principal objectivo era arregimentar escravos (quantas vezes para os integrar nos exércitos ganhadores). Normalmente, os seus conhecimentos e capacidades eram aproveitados pelos seus proprietários, havendo notícia de escravos gregos que foram perceptores e educadores de tribunos romanos. O estatuto das mulheres era, entre gregos e romanos, semelhante ao dos escravos e dos estrangeiros, dado que ambos poucos ou nenhuns direitos tinham.

Com o recrudescer da importância das religiões monoteístas (falo sobretudo da Bacia do Mediterrâneo e da Europa) as guerras inter-religiosas passaram também a constituir uma forma de aceder à vida eterna: tanto no caso dos cristãos como no dos muçulmanos, morrer a combater pela própria fé era entendido como muito favorável no acesso à vida eterna. Assim surgem as Cruzadas do lado cristão, e as Jihad (ou Guerras Santas), do lado muçulmano. É por essa época que Portugal se forma e se expande, tendo beneficiado da passagem maciça de guerreiros cristãos norte-europeus a caminho de Jerusalém, nomeadamente na conquista de Lisboa aos Mouros (frescamente islamizados e já considerados “infiéis”).

Contudo, raramente as cruzadas vinham pelo Atlântico, pelo que o Alentejo e o Algarve já não tiveram tanto concurso de cruzados. Daí a importância que teve, na conquista do sul de Portugal (e em especial do Algarve), a surpreendente garantia dada aos mouros vencidos, de se lhes conceder “carta de alforria” isto é, carta de liberdade. No fundo, operava-se quase exclusivamente de uma “mudança de lado” com benefícios mútuos: poupavam-se refregas mais violentas (porque o estatuto pessoal se mantinha) e tomavam-se para a cristandade, terras e posições militares do “infiel”. Tudo isto era muito positivo porque ao mesmo tempo que se mantinha a população residente e todo o sistema produtivo, se reduziam maiores animosidades e eventuais tentativas de resgate muçulmano.

Este foi, contudo, um caso esporádico, presumo que ditado pelo baixa densidade de portugueses que então povoavam o território, dada a súbita duplicação do territorio durante a formação de Portugal como reino independente. O normal, era os derrotados/conquistados terem poucos ou nenhuns direitos e pagarem pesados tributos por não professarem a religião do conquistador. Talvez devido a este peculiar estatuto, o país se passou a chamar “Reino de Portugal e do Algarve” e, a partir da conquista de Ceuta em 1415, “Reino de Portugal e dos Algarves”.

Com esta conquista, Portugal passou a envolver-se nos assuntos da região, sendo disso exemplo o Desastre de Alcácer Quibir em 1578: D. Sebastião alinhou ao lado do Sultão Abu Abdalá Maomé Saadi II, que tinha sido deposto pelo seu tio e queria recuperar o poder. É sabido quem foi, nesta refrega, o grande vencido! Os cativos (hoje seriam prisioneiros de guerra) portugueses foram um dos despojos de guerra. A libertação dos cativos nobres foi feita contra o pagamento de pesados resgates. A soldadesca, sem capacidade financeira e por isso não transaccionável, foi feita escrava e, segundo a prática comum, vendida para outras paragens. Quando, cerca de 100 anos depois, começou o desenvolvimento económico das Américas, a escravatura foi entendida como a solução mais rentável. Uma vez que os povos autóctones eram dificilmente escravizáveis porque, conhecendo o terreno muito melhor que os colonos, facilmente desertavam, foi-se buscar mão-de-obra a África! Explorando a antiga prática da escravização dos derrotados, guerras foram artificialmente provocadas entre etnias rivais, permitindo satisfazer a insaciável necessidade de força de trabalho das Américas. A Feitoria da Fortaleza de S. João Baptista de Judá*, na costa do actual Benim (a que os portugueses chamavam Costa dos Escravos) foi ponto de referência desse sórdido negócio. Terão sido entre dez e doze milhões, os seres humanos que foram assim transaccionados e transferidos de África para as desconhecidas Américas.

O que motivava os negreiros não era qualquer ódio racial (havia mesmo negreiros mestiços), mas a cega e desmesurada busca do lucro. O racismo terá vindo depois, fruto da subjugação económica e social a que os escravos eram sujeitos. A sua aculturação (esquecimento quase completo das suas culturas) foi conseguida através da proibição de utilização das suas línguas de origem (sobretudo na América anglófona), pretendendo-se com isso inibir qualquer tipo de organização ou de rebelião. Sobraram a música e o ritmo, porque eram favoráveis ao trabalho!

Quase o mesmo aconteceu na Costa Oeste das Américas a chineses e japoneses, nas possessões espanholas e inglesas. Eles foram da mesma forma brutalizados (e, na prática, escravizados), mesmo já depois do fim oficial da escravatura, através de um mecanismo, se possível, ainda mais sórdido: eram contratados na China e no Japão a preços irrisórios e tinham de pagar a sua própria viagem, alojamento e alimentação aos seus contratadores pelos preços decididos por estes o que, na prática, os colocava na posição de devedores eternos e, frequentemente, por mais de uma geração. Contrariamente aos escravos, não tinha o “empregador” qualquer obrigação de os alimentar o que, se deixassem de trabalhar por velhice ou qualquer outro motivo, significava a morte certa!


Estou convencido que o racismo, enquanto mecanismo de supremacia, é um produto da escravatura. É a discriminação económica e social que gera o racismo e não o contrário. A desvalorização dos povos ostracizados é alcançada através da subvalorização -leia-se também desinteresse e desconhecimento- das suas culturas, hábitos e costumes de origem. Para tal, nem a escravatura formal é necessária. Basta ver como os emigrados argelinos, portugueses, espanhóis ou italianos (numa palavra, mediterrânicos), de estatuto social bem inferior ao dos franceses eram tratados na França das grandes obras dos anos 60 do séc. XX, e de como lá são hoje tratados os “magos/magnates da bola” dessas mesmas origens. Recordo também a forma como os árabes eram genericamente (mal) tratados na Europa até terem reassumido a posse das vastas reservas de petróleo que hoje controlam e usufruem. Em minha opinião, o racismo pouco tem a ver com a origem étnica. Trata-se de um subproduto (muito desprezível, na verdade) de uma suposta supremacia social!

*-Só como curiosidade, a Fortaleza de S. João Baptista de Judá, hoje Património da Humanidade, foi oficialmente abandonada por Portugal no dia 31de Julho de 1960, tendo o governo de Salazar então ordenado ao último residente da praça que a incendiasse antes de a abandonar!

Fernando Pinto

Arquiteto

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